quarta-feira, 29 de abril de 2009

Memórias de uma semana de cão*

(Dog speaking here*)

Dia 1 (5ª feira 9 de Abril): Ói??, a minha dona a passear-me a esta hora da manhã? Isto não é normal! Que fixe!
Hmmm, nunca tinha reparado no cheirinho que estas flores emanam logo pela manhã, que boa ideia dona, que fixe, que fixe, és a melhor dona do mundo!

Dona? Então vamos para casa outra vez? Ah, percebi, vais beber cafezinho. Hmm, está bem, vamos lá, mas olha que estou ansioso de ir para casa da avó que eu e o Ramika ontem ficámos a meio de um jogo muito giro!

Dona...? Dona?? DONA!!! Olha D. dona, vou ficar aqui a gritar até me ouvires, ouviste? Esta brincadeira não é gira, nada gira, nada nada!
Ou então.. será que não é brincadeira? Dona...! Esqueceste-te de mim? Dooooooooooonaaaaaaaaaaaaaaa!!!

Hmmmm, porque é que ela... hei! Hei!! Anda cá! Destranca a porta! Consegues ouvir-me? Anda cá, onde é que te enfiaste? Vou ficar aqui a chamar por ti até me ouvires!


(Depois de almoço...)
Dona.. onde é que vais agora? Não me digas que vais outra vez sair. E eu? Não tenho direito? Ai é? Vou entrar aqui nesta dispensa e procurar uma ferramenta para conseguir abrir a porta. Eu sei onde o dono guarda as coisas, eu vejo.. Ah pois é, vocês pensam que eu estou a dormir sossegadinho mas eu vejo tudo!

Ei... EI! SOCORRO! A porta fechou-se, tirem-me daqui, tirem-me daqui, tenho medo do escuro, socorro!

»Mete-se o fim-de-semana da Páscoa»

Dia 2 (Domingo de Páscoa): Olha... onde será que vamos? Neste carrito? Eles vão todos aperaltados, deve ser coisa importante deve.
Ai dona, esse perfume cheira muito, prefiro quando não pões nada, cheiras melhor, a sério. Mas eu gosto de ti na mesma. És uma dona muito linda, até me fizeste um corte de cabelo giríssimo e depois deste-me um banho que eu detesto mas eu sei que é para meu bem, eu sei, mas detesto! Detesto, detesto, detesto!

Ó donos.. onde é que vocês vão? Quem é este que eu não gosto nada porque nunca me faz festinhas? Que ... que sítio é este? Ei!! Ei, estão a ouvir? Não me deixem aqui fechado. Vá lá... levem-me com vocês...
Ai é? Não me ligam? Não me ouvem? Vou puxar por estas coisas aqui de lado, vocês põe sempre isto e qundo saem do carro tiram, por isso se eu tirar devo sair daqui, não é?

Bolas, estou farto de roer isto e o carro não se abre.

Ei, alguém me ouve? Socorro! Quero ir ter com os meus donos! Quero ir fazer xixi! Ei!!

Ninguém me ouve, é melhor roer mais, pode ser que consiga sair mais depressa.

Olha..., olha são eles! Boa, já não preciso roer mais, já posso estar aqui sossegadinho que eles estão a chegar.

Donos!! YES! Que fixe, chegaram, vocês ouviram-me! Não precisei roer aquilo tudo até ao fim!
Errrr... mas.. mas... porque é que estão a ralhar comigo? Eu pensava que se saía daqui se tirássemos isso.

Dia 3 (2ª feira 13 de Abril): Não sei porquê mas hoje já não tenho a casa toda para mim.
Mas como raio vou eu entreter-me? A piada estava em estar à porta de casa a gritar para a minha namorada me ouvir. Agora como é que ela me vai ouvir? Vou ter que gritar ainda mais alto. Estes meus donos não percebem nada.

Espera lá, porque é que ela virou a toalha para cima da mesa. Ah... estou a ver, deixa-me aqui a falar para o boneco, vai embora e ainda me esconde alguma coisa boa.
Isso é que era, não me chamassse eu Pootchie Nunes.Vou já ver o que é que está ali em cima da mesa.
Ups... ai ai ai... ela vai aborrecer-se. O cinzeiro. A caixa do pão. Opá... vai achar que sou um trapalhão. Quando ela chegar a 1ª coisa que vou dizer é que foi sem querer!

Olha, veio a casa comer. Acho que não está muito aborrecida, felizmente! É que foi mesmo sem querer. Ela é tão compreensiva... Boa! De tarde vou ajudá-la. Vou ver se consigo tratar de outras coisas cá em casa, como ... o lixo!

Dia 4: Esta dona... um cão a ajudar como pode e ela dificulta tudo. Tentei dizer para não perder tempo com o lixo que eu levava mas ela prefere assim, tudo bem. Vou ver o que posso fazer com estas caixas de cartão.

Dia 5: Hoje estou cansadito. Desculpa lá dona mas não te consigo ajudar em nada! Vou ficar aqui a descansar que chamar tanto por ti cansa, parece que não mas cansa. Já estou rouco!

Dia 6: Hoje também estou cansadito. Porque é que ela fecha a porta da cozinha? Deve achar que é muito engraçado ficar aqui fechado, deve. Aqui não tenho nada para fazer!
Vou ali fora. Caraças, como raio é que isto se abre? Eles põem a mão, puxam e.. já está ! Oh yeah! Afinal abrir portas é fácil, como é que não tentei isto antes? Que delícia, vou ali para ao pé da porta dizer a todos que estou crescido e já sei abrir portas!

Dia 7: Olha, ela fechou a porta outra vez, deve ter-se esquecido que já aprendi a abrir.Ou então é um jogo! Que giro, é isso, é um jogo!
Este jogo tem regras diferentes. Assim não vale, dona! Fizeste batota, trancáste a porta, assim não vale, esta brincadeira já não é gira!
Doooooooooooooonaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! (Ai que já estou a ficar cansadito. Se for bem a ver já não sou propriamente novo. Mas esta dona acha que sou um jovenzinho, é? Já nem consigo ouvir a minha voz!)

»Mete-se o fim-de-semana«

Dia 8 (2ª feira 20 de Abril): Óh dona, donaaa??!! Mas isto agora é todos os dias? Então agora fico aqui neste espacinho minúsculo que nem dá para me coçar, aqui sozinho à tua espera? Se isto é gostar de mim vou ali e já venho.
Já que não me ligas vou beber qualquer coisa, estou com sede.
Vou fazer sumo. Ouviste dona? Vou fazer s-u-m-i-n-h-o!

(Ouço a chave da dona na porta. AI como lhe vou dizer que correu mal?)

Sabes dona, sabes, sabes? Sabes? Dooona... Ai que nem imaginas, fez tanto barulho, isto é pesado, eu não sabia, ai que me assustei tanto dona... E agora... ainda tentei limpar isto tudo mas não encontro os panos. Ó dona... desculpa. Não, não. Não me cortei nem nada e o sumo assim é tão doce, blergh, não gostei, mas... deeeeescuuulpaaaa, não queria fazer isto. Desculpa sim? Desculpa... Desculpa, desculpa.
Eu ajudo-te a limpar... dona?? Banheira? Nãããão! Tu sabes que eu detesto! Ainda por cima a frio? Fogo! Estás mesmo aborrecida, isto é tortura, há leis dos direitos dos animais! Vou fazer queixa! SOCORRO!!

Uff, foi rápido. Eu ajudo-te a limpar, sim? Vá lá, deixa-me ajudar, deixa!

Olha que lindo que ficou! Adoro-te dooona!

E agora de tarde vou preparar um leitinho para o dono para quando ele chegar ver que me portei bem.
Ups. Porque é que isto está a esguichar por todos os lados...???





*Versão da dona neste post: Memórias de uma semana de cão (Versão da dona) [http://historiascommemoria.blogspot.com/]

sábado, 18 de abril de 2009

Imaginário XXXIX - 2ª parte

[Continuação daqui]

... já tão longínquas que nem memórias eram. Já não eram nada.

Mesmo que ela pudesse compreender o que se estava a passar dificilmente o deslumbramento a permitiria converter os flashes em palavras compreensíveis.

Do seu lado de fora os médicos lutavam para a estabilizar e reconheciam nos seus murmúrios moribundos e tentativas de gestos que o tempo dela passava mais depressa que o tempo deles, sabiam por experiência que em segundos não poderiam fazer nada.

Ela, por seu turno, fazia a viagem mais surpreendente da sua vida.

Ela não tinha a percepção que esta sua viagem por si mesma ao longo dos seus 48 anos de existência, onde ela se demorava em alguns episódios e podia até atrasar o tempo, duravam apenas uma fracção de segundo para os médicos.

Do exterior do quarto a filha fitava a máquina que fazia a mãe queixar-se, a máquina dos bip's, e via com os seus olhos o ritmo cardíaco da mãe decair a um ritmo irrecuperável.

Ela, no entanto, perdia-se nos pormenores da mais louca viagem da sua vida. A primeira coisa que queria fazer quando regressasse era contar a todos que a viagem não se faz no sentido ascendente mas no sentido descendente. A viajem é feita do fim para o início. E também que é possível interagir connosco. Enquanto decorria a viagem parecia ter capacidades inimaginadas, conseguia pensa, anotar mentalmente, conseguia reviver, conseguia tocar, falar, não havia limites.

Viajou daquele quarto de hospital cheio de bip's até ao acidente, por aí fora para trás e naquela altura todos os pequenos nadas de que foi feita a sua vida tiveram uma imensa importância. O mais simples gesto de ajeitar o cabelo e a gola da camisa todas as manhãs enquanto o elevador descia eram agora tão importantes como o nascimento da sua filha, como o seu casamento, como a morte dos seus pais e irmão. Tudo era importante. Agora via - sentia - que tudo era importante, mesmo o que parecia desprovido de qualquer sentido.

Viajou da sua idade adulta pela sua vida inteira até ao seu nascimento. No momento em que presenciava - via, sentia, ouvia, cheirava, pressentia, participava - o seu próprio nascimento sentiu uma força.

Os médicos já nada podiam fazer. Os sinais vitais atingiam os valores mínimos e sabiam que a vida se esvaía dela. Nada mais pudiam fazer senão esperar o óbito.

Na sua derradeira viagem ela entrava na recta final, no útimo troço do último percurso da sua vida.
Assim que ela se refugiu naquele ventre que lhe oferecia protecção o seu óbito foi declarado.

Imaginário XXXIX

Não queria que o último som nos seus ouvidos fosse aquele bip irregular que lhe ia lembrando constantemente que em breve estaria morta. Não, queria tanto que aquele bip fosse musical, um som alegre, um chilrear, qualquer coisa em vez daquele som tão desprovido de vida que foi escolhido para traduzir precisamente os seus sinais vitais.
Agora, ali deitada naquela cama impessoal onde nem imaginava quantas pessoas teriam pensado o mesmo que ela, concluía que era perfeitamente aniquilador de qualquer esperança ouvir permanentemente um "Bip, bip, bip" que lhe dizia que cada vez estava mais perto da chegada a um ponto qualquer. Ou de saída de um outro ponto, em breve descobriria.

Já tinha lido sobre "near death experiences" e perguntava-se quando começaria a ver a tal luz brilhante e a ver a vida passar à frente como um filme em "fast-foward". Como seria rever tudo de uma só vez? Iria lembrar-se de alguma coisa que achava esquecida? O que seria essa coisa?
Pensou que não devia estar a bater bem: era suposto estar assustada ou curiosa? Se não fosse aquele maldito bip... Se não fosse estar com tubos por todo o lado e não conseguir dizer a ninguém diria que não há pior que partir de vez a ouvir aquilo. A curiosidade, essa, ficava cada vez maior e o medo cada vez mais para trás.

Começou a sentir-se mais calma. Lembrou-se de quando soube que estava gravemente doente e não sentiu raiva nem tristeza. Sentiu-se como que a ver um filme, faltam as pipocas, pensou.

Ouviu uma voz conhecida e tentou abrir os olhos mas não conseguiu. Sabia que era a sua filha que perguntava nesse momento ao médico o que se passava. Ela respondia à filha que estava tudo bem. O médico respondeu para ela se afastar, que tinha que sair dali.

Tolo do médico, não me ouve? Deixa estar aqui a minha filha. Saberei lá eu se a volto a ver? Sentiu-se a rir calma e docemente, um misto de riso e sorriso e queria tanto conseguir dizer apenas que estava tão bem.

Mas aqueles horríveis bip's, aquelas vozes desconhecidas que não a deixavam ouvir a filha e aqueles malditos tubos que só serviam para a impedir de comunicar com o que ainda era o seu mundo - Será que havia outro? Como será se houver? - e dizer pelo menos para viverem o melhor que puderem que a vida é tão curta para mágoas. Queria dizer que estava bem, talvez não o bem que queriam que estivesse, mas que estava melhor do que tinha estado: leve e sem dores. Queria dizer também que podiam substituir aquele bip que agora já não era enervante e parecia mais um som lá muito longe.
Sorriu ao "ouvir" todos quantos conhecia dizerem em coro que tinha mesmo mau-feitio. Sorriu fracções de segundo depois, num sorriso-réplica, por ver todos ali reunidos de novo.

As vozes dos médicos, o bip, o choro da filha eram agora memórias longínquas...


[Continua]