sábado, 28 de fevereiro de 2009

Imaginário XXXVII

Vi-te a primeira vez de soslaio. Lembro-me perfeitamente porque nunca mais esqueci o teu olhar. Não sei se os teus olhos brilhavam tanto como me pareceu mas para mim o teu olhar ofuscava.

Estavas na paragem do autocarro como descobri que estavas todos os dias. Tu, o teu jornal e a tua pasta. Entraste placidamente, mostraste o passe como todos mas a tua calma confesso que era exasperante, a tua calma àquela hora da manhã, áquela hora em que apesar de cedo já todos estão stressados como se fosse o fim do dia.

E a tua calma exasperante chamou-me a atenção. Lembro-me de ter praguejado para dentro e maldito a tua serenidade e as coisas da vida são como são e se não fosse a tua calma hoje não te estaria a escrever esta carta.
Eu na minha pressa a levar o mundo à minha frente - como se por eu andar depressa o mundo girasse mais rápido. Porque andaria eu tão depressa? - e acabei por te levar à minha frente: a ti, à tua pasta, ao teu jornal. E acabei por te trazer para o meu mundo, sem querer, sem saber...

Eu e a minha pressa armámos uma confussão no autocarro e tu e a tua calma resolveram tudo num instante. Sei que corei violentamente, sei que corei a um ponto que pensei que a cabeça me ia rebentar. Não sei se corei pela confusão, se pelo teu olhar ter outra vez cruzado o meu e ter brilhado ainda mais. Talvez por ambos. Tu sabes, aquelas situações em que ficamos paralisados. E tu com a tua calma pegaste no teu jornal, na tua pasta e na minha e disseste que devolvias quando eu me sentasse e acalmasse, que tanto stress de manhã fazia mal.
Sentámo-nos juntos: eu, tu e a tua calma. E o resto do mundo desapareceu.
Entretanto saíste no teu destino. E eu estática a olhar. Saíste do autocarro mas percebi que não irias tão cedo sair da minha vida.

No dia seguinte não estavas lá no sítio do costume. Nem no outro. A ansiedade começou. No terceiro dia lá estavas. Sorriste e esse sorriso brilhava. Brilhava tanto que eu me sentia ofuscada.
Nesse dia ficámos juntos, não saíste na tua paragem. Eu não saí na minha. Ficámos juntos e quase sem falar fomos para minha casa.
O teu sorriso, a tua voz doce e calma fazia-me esquecer tudo o resto e era bom.
No dia seguinte voltaste. E no outro. Quando eu reparei não te tinhas mudado só para o meu mundo, tinhas-te tornado o meu mundo.

No último dia que te vi fizemos amor como nunca tínhamos feito - pelo menos eu nunca tinha feito, nem contigo nem com ninguém - até aí. Nunca me tinha entregue de uma forma tão intensa, tão descontraída, tão solta. Eu que já tinha tido umas quantas relações senti-me nesse dia de novo virgem. Sei que enquanto me apertavas nos teus braços durante aquela onda que nos sacudiu de alto a baixo eu sorria num sorriso que eu desconhecia em mim. E senti-te a minha pele. Senti coisas que não tinha sentido antes, nem mesmo contigo. E sorri.

No dia seguinte ao acordar sorri. E no trabalho sorri. Passei o dia a sorrir. E cheguei a casa. Tinhas ido embora e até hoje eu não sei porquê.

Não sei tão pouco quanto tempo passou desde que foste embora e me deixaste apenas o sorriso que ainda trago hoje. O mundo, que tinha desaparecido naquele dia no autocarro, ainda não apareceu. E tu, que te tornaste o meu mundo, desapareceste.

E eu que queria tanto perguntar-te como foi seres a minha pele...


(28 de Fevereiro 2009)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Imaginário XXXVI

Enquanto esperava pela sua vez na consulta, naquela sala de espera tão familiar, observava as pessoas.

Observava que as pessoas chegavam tímidas. Observava que as pessoas sussurravam um cumprimento cabisbaixas como se um simples “boa tarde” fosse perturbar a timidez de todos os outros.

Observava que poucos traziam algo para fazer – deviam ser os inexperientes ou talvez crédulos que daquela vez é que seria a vez que seriam atendidos na sua vez e via-se pelo seu olhar, que dava para distinguir uns de outros, que uns ficavam exasperados olhando para as horas e suspirando e que outros se sentavam expectantes.

Observava que alguns perdiam o olhar na jarra, talvez pensando quem se daria ao trabalho de substituir as flores: se a recepcionista se a empregada de limpeza. Observava que outros vagueavam o olhar pelos quadros que não compreendiam. Perguntava-se se gostariam da combinação de formas e cores, se apaziguaria as suas ânsias fosse qual fosse o motivo que lá levasse tanta gente de meios tão variados.

Distraía-se das suas observações e divagava nos pensamentos: que na morte e na doença não há classes. Todos sofrem de maleitas, todos morrem e depois de mortos todos são iguais e vão para o mesmo sítio. Irão mesmo? Dava por si a perder-se no olhar de cada pessoa que via, nos seus modos, nas suas vestes, no que cada um seria mesmo face ao que mostrava ser.
Inevitavelmente, em situações onde partilhava o espaço com desconhecidos – fosse nos transportes, fosse em seminários, fosse na praia, dava por si a reparar em tudo o que caracterizava as pessoas e a divagar sobre a sua teoria dos equilíbrios. Uma espécie de lei da física sociológica que leigamente ia desenvolvendo para si e que por muito que pensasse e observasse nunca chegava a conclusão nenhuma.

Via pessoas de ar mais cansado. Onde estariam as pessoas felizes? Para cada pessoa cansada haveria uma em igual grau mas em sentido inverso (quase como se pudesse aplicar um vector) descansada?

Via pessoas gordas. Haveria tantas pessoas gordas como magras?

Via pessoas de cabelos longos, outras carecas. Se uma é careca então seria porque alguém de cabelos longos teria ficado com a sua parte de cabelo.

Perguntava-se se também os outros pensavam estas teorias quase absurdas. Quantas pessoas estariam a desenvolver uma lei das compensações, como lhe chamava, semelhante à sua, baseada no princípio de que para cada compensação terá que haver uma descompensação?

Mergulhava os olhos na revista que trazia sempre consigo enquanto esperava a sua vez para que ninguém percebesse o que estaria a pensar, receava que os seus pensamentos pudessem ser lidos. Segundo a sua própria lei das compensações, para cada pessoa que não é capaz de usar o sexto sentido outra pessoa seria capaz de desenvolvê-lo, apurá-lo e (quase de modo receando de uma conspiração) usá-lo sem se esforçar para isso. Estaria ali alguém com alguma dessas capacidades telepáticas? Estaria ali alguém capaz de ouvir o que pensava?
Ao olhar de novo em volta os seus olhos fixaram-se em outros olhos que sim, poderiam muito bem estar a ouvir o que pensava. Se ao menos dessem um sinal…

Nada.

- Sr. Martins
- Eu?
- O Dr. diz que pode entrar.


(21 de Fevereiro 2009)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Imaginário XXXV

Lembras-te das nossas conversas, aquelas longas conversa, tu sentavas-te numa ponta e eu noutra, eu com uns ideiais e tu com outros, eu com um modo de ver as coisas e tu com outro.

E foi assim que fomos crescendo, sempre lado a lado, sempre ali para o que desse e viesse.

Foi no meu ombro que choráste tantas vezes e eu no teu chorei outras tantas.

Não sei se ainda te lembras. Acredito que sim.

Lembro-me particularmente de uma noite, foste a minha casa - já eu tinha casado - , estávamos apenas nós. Perguntáste se eu era feliz.
Na altura perguntávas-me muito isso. Eu respondia genuinamente feliz que era feliz. E tu ficavas feliz por mim mas eu via o teu olhar triste.

Perguntava-te quando serias feliz. Tinhas sempre muitos projectos a alcançar antes de seres feliz. então eu reformulava a pergunta e perguntava quando é que nos teus planos encaixava a felicidade, mas tu respondias sempre o mesmo: que ainda tinhas que acabar o curso, depois fazer o mestrado, depois ir trabalhar nem tu sabias para onde - para um sítio qualquer, depois viria o doutoramento só depois casarias e casarias se desse, não era uma prioridade. Eu queria acreditar que esses eram os planos para a tua felicidade. Queria acreditar que serias feliz assim, com todos esses projectos a envolverem-te e comandar a tua vida.

Perguntávas-me se eu não me arrependia. Arrepender de quê? Respondia eu.

Lembro-me de te dizer na altura que parecíamos jovens de 20 e poucos anos mas que o tempo ia passar mais depressa do que pensávamos e que um dia ias olhar triste para as tuas fotografias, artigos publicados (sim, ias publicar imensos artigos em revistas da especialidade), calhamaços de livros temáticos nas prateleiras, especímenes únicos embalsamados e numa vitrine, irias ter mil histórias para contar e não irias ter ninguém que as ouvisse. O teu modo de vida não iria (temia eu) permitir que estabelecesses relações duradouras com ninguém.

Os anos entretanto passaram. Tanta coisa mudou na tua (minha . nossa) vida, tanta coisa permanece igual.

Encontramo-nos regularmente mas já não falamos de planos nem de sonhos, esses foram sonhos um dia, sonhos que se sonham uma vez numa época e que não podem ser depois os pesadelos do futuro.

E quando não se quer ter pesadelos no presente porque os sonhos do passado não se concretizaram no futuro, falamos apenas do estado actual das coisas, da crise, dos preços, das modas, dos outros, do hoje.

Jamais se fala do futuro - sabemos que o futuro é o que ele quiser ser e que apenas damos um ligeiro empurrão. Jamais se fala do passado. Aceita-se apenas o presente.

(7 Fevereiro 2009)

Imaginário XXXIV

Enquanto estavam todos na galhofa debaixo daquele túnel que servia de passagem a tanta gente o olhar dele cruzou-se com o de um velho que casualmente por lá passou.

Enquanto por lá passava, velho e de pernas cansadas, apoiado na sua bengala que há tantos anos lhe fazia companhia, o seu olhar cruzou-se com o de um jovem que lá estava.

Por um qualquer motivo aquele velho não desviava o olhar, um olhar que lhe parecia familiar, um olhar que parecia que ele próprio já teria visto vezes.

As forças faltavam-lhe cada vez mais com toda a emoção de estar ali. Ali, naquele lugar, àquela hora, de olhar fixo cruzado naquele jovem que sabia ele ter 21 anos. Que ele sabia ter sonhos e ambições, que ele sabia lutador.

O olhar do velho não o assustava. Sentia que, nunca o tendo visto na aldeia nem nunca tendo saído de lá, o velho o conhecia. Sentia mais que isso, sentia que havia um elo entre ele e o velho.

Não sabia o que havia de fazer. Tantos anos volvidos entre a sua saída e este regresso ao sítio onde já não conhecia ninguém encontrava-se agora ali, no mesmo sítio onde 60 anos antes falava com os seus amigos sobre a sua vontade de sair da terra e procurar a emoção lá fora.

Aquele velho parecia saber qualquer coisa sobre ele. Tinha vontade de ir-lhe falar. Imaginou que o abordaria perguntando se precisava de ajuda.

Viu o jovem dirigir-se a si. Fraquejou. Não tinha pensado nessa possibilidade. Não pensou no que poderia ser dito.

Saindo do grupo acercou-se do velho. Perguntou-lhe se se conheciam. Que o seu olhar lhe era familiar.

Sentiu o cheiro do jovem. Ouviu a sua voz. A voz que foi sua.

Temeu que o velho se sentisse mal. Perguntou-lhe se estava bem.

Sorriu para o jovem. Que estava tudo bem, que nunca lhe tinha estado melhor. Acrescentou que a vida dele ia chegar para muitos sonhos. Que fosse fiel a si mesmo, que não se esquecesse - de si - que quando não soubesse com quem contar que contasse - consigo.

Conhecêmo-nos?

Tu ainda não me conheces. Eu conheço-nos.

Perguntou se o velho estava bem. Que enigma era aquele, quem era ele.

O velho recuperou da emoção. Ia seguir caminho, tinha ainda uma longa jornada. Não havia enigma: bastava que o jovem todas as noites se olhasse olhos nos olhos ao espelho.


O velho seguiu a sua jornada, foi andando lentamente pelo túnel fora até o jovem, ainda petrificado, o perder de vista.

O jovem correu para casa. Olhou-se no espelho. Arrepiou-se sem saber se tinha sido verdade ou não. O primeiro objecto que seleccionou para a sua maleta foi um espelho de mão da mãe. Teria que ficar em cima de tudo para se olhar nos olhos sempre que precisasse.

(24 Janeiro 2009)

Imaginário XXXIII

- Acho que ele endoidou de vez - conseguiu ela dizer entre soluços a quem falava ao telefone.

Ah... endoidei, ela nem sabe o que diz, não podia estar a pensar com mais clareza.

- Desculpa, não consigo conter, não consigo falar - era o que do outro lado se ouvia a custo, entre soluços e longos períodos de silêncio. E lá vinham mais soluços e mais silêncios a cada vez que do outro lado alguém dizia calma, vou aí ter contigo, vem ter comigo.

E ele ria, ria que nem um perdido como se alguém lhe tivesse contado a mais hilariante anedota. Conseguia até lembrar-se da história daquele inglês que tinha morrido de tanto rir a ver uma série de televisão e seria uma pena - pensou - se morresse assim, logo hoje. Seria no mínimo irónico, mas é assim que a vida é, irónica.

- Ele só pode ter enlouquecido - saía por entre mais um soluço - ele... ele vem aí...

E ele pegou no telefone e tomou conta da conversa. Que ele (aquele que estava do outro lado da linha) tinha que ir lá ter a casa. Ele (o que supostamente tinha endoidecido) queria falar com eles (ela e ele que estava ainda do outro lado).
- Vá lá, depacha-te, anda que eu não tenho tempo a perder - disse ao desligar sem dar hipótese de resposta.

E ria, ria que nem um doido enquanto cantarolava Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida, hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.
E ela chorava. Não conseguia controlar os soluços que lhe arrebatavam a respiração e a deixavam sem fôlego, cansada, estoirada e com uma ainda mais incontrolável vontade de chorar.

Enquanto ela se prostrava e balançava que nem uma louca lavada em lágrimas numa ladainha de choro irritante ele cantarolava, ria e ia fazendo as malas.

- Vá lá querida, não fiques assim. A sério!, pensa bem, pensa, esquece as penas, esquece tudo e pensa. Isto foi a melhor notícia que tive em anos. Que tivemos. Todos: os três. Vá, canta comigo, hoje é o primeiro dia do resto da minha vida...

E seguia a cantarolar num riso de felicidade que passava o limiar do infantil para o histérico.

- Como podes dizer isso - gritou ela tantas vezes até ficar rouca - como? E alternava o choro, a ladainha e os gritos que já nem se ouviam por não ter voz.

- Eu não endoideci, aliás, devo dizer-te que estou mais lúcido que nunca, louco andava eu feito zombie na vida à espera da morte. Vivo estou eu agora. E se rio é porque vivo.

Entretanto a campaínha toca. Ele vai abrir a porta enquanto lhe diz, carinhosamente, para ela se compôr e não ser dramática.

- Entra e senta-te, vê lá se me ajudas a compô-la que está para aí numa crise de choro que até parece que morreu alguém - e ditas as palavras, que ele próprio ao dizer ouvira, ria ainda mais e mais descontroladamente - Ai que morro de tanto rir - e ria ainda mais.

Ele (o que acabava de chegar) nem sabe por onde começar nem o que pensar. A casa sempre antes tão direitinha num reboliço. Roupas, papeis, livros pelo chão.

- Entra lá, não temos tempo a perder, não te mostro a casa porque sei que já a conheces mas antes que também tu me aches louco deixa-me dizer-te que não te vou matar nem nada que se pareça. Bebes alguma coisa? Um whisky? Cerveja? Chá? Acompanha-me num whisky velho, faz-me o jeitinho, afinal de contas já partilhámos outras coisas - e dito isto voltava a rir como se tivesse dito a piada mais hilariante do mundo. Ai que não posso rir tanto, ainda morro - e voltava a rir da mesma piada que não se cansava de fazer.

Ela soluçava no chão, já em soluços baixinhos, cansados, os olhos inchados, o rímel que esborratava a face, o desespero de quem já nem procurava um lenço para enxugar as lágrimas. Ele (o que acabava de entrar) baixou-se para a abraçar e nesse instante ele (o que ria) diz-lhe em tom sério e sem rir:

- Vou-me embora. (E dito isto ela rompia de novo em lágrimas exaustas, tantas que lhe ardiam os olhos e a cara, tantas lágrimas que já chorava em seco) Vou-me embora, sei de tudo. E o que interessa aqui é que se durante anos fui corno e até me importava mas sempre esperei que ela mo dissesse, hoje não me importo e até agradeço. Agradeço, sim. Sabes, numa questão de segundos tudo se tornou relativo. Com a aproximação da morte tudo se torna relativo, mas (sussurrou ao ouvido dele, o que acabava de chegar) cada um tem a sua hora e só nessa hora percebe a relatividade. E a minha chegou. E sinceramente? Não me importo. Não me importo e estou felicíssimo, creio que vou viver mais estes dias que me restam do que vivi os mais de 40 anos até aqui.
Estava preocupado com ela, sabes, recebeu mal a notícia. Creio que para ela tudo seria imutável: eu cá em casa, tu no hotel ou aqui ou onde quer que fosse e assim seria para sempre. Mas as coisas mudam. Não quero que ela fique só. Nem quero que ela tenha pena de mim, nem tu sequer.

Bebia mais um gole de whisky.

Não é pena que quero, quero que entendam que não ensandeci, apenas tomei consciência naquele minuto do que queria, e o que quero é sair daqui, desta vida - e nisto ria de novo. Sabes, isto entretanto torna-se quase ridículo, porque "vida" e "morte" tomam outros sentidos para mim agora, mas não para vocês. Vá lá, não me olhes com essa cara de espanto. Peço-te que cuides dela. Que venhas cá para casa. Podem vender esta e comprar a vossa, tanto me faz, desde que fiques com ela. Tu e eu somos os pilares da vida dela, eu sei, e por isso nunca me intrometi entre vocês, mesmo sendo o marido, do mesmo modo que - e ria de novo à gargalhada - nunca te meteste entre nós, se é que isso foi possível, nunca te meteste entre nós porque eu não te trouxe e porque não forçaste. Mas - e bebia mais um gole - isto tudo para te dizer que vens para cá. Hoje.

Beijando-a na testa com um imenso carinho saiu de casa a cantarolar hoje é o primeiro dia do resto da minha vida e já não a ouviu dizer sumidamente amparada nos braços do outro o amo-te, não te quero perder, não morras, não estou preparada para te perder para sempre que ela conseguiu dizer antes de desfalacer.

E saiu feliz porque finalmente ia viver nos poucos dias que lhe restavam de vida.

(21 Dezembro 2008)

Era uma vez um ancião

Mesmo mesmo no meio do universo havia um mundo. E mesmo mesmo mesmo no meio do mundo havia uma floresta. E mesmo mesmo no meio da floresta, mesmo mesmo lá no meio, havia uma pequena aldeia. Tão pequena que já só tinha um casebre, um poço e, mesmo mesmo no meio, um pelourinho.

Essa aldeia tão pequena tinha apenas um habitante, um ancião que ninguém sabe que idade tinha porque ninguém sabia que ele existia, assim como ninguém sabia que a aldeia existia.
E o ancião também não sabia porque a última vez que ele falara com alguém já tinha sido há tanto tempo que ele próprio não se lembrava.
Ele também já não tinha noção do tempo que passava, ele só sabia que a seguir à noite vinha o dia e a seguir ao dia vinha a noite e que a seguir ao Verão vinha o Outono e a seguir ao Inverno vinha a Primavera.

O ancião já não ansiava a vinda de ninguém.

Durante muito tempo, que ele não se lembra nem quando nem quanto foi, ele esperou alguém.

Mas agora, passado todo o tempo que passou, o que ele espera é que não venha ninguém. Assim como desejou em tempos ouvir uma voz deseja agora que nenhuma voz se oiça.

Se alguém por lá passasse (que não passa porque ninguém já quer ir aos lugares que faltam descobrir porque acham que estão todos descobertos) ia com certeza ter muita pena do ancião. E se alguém por lá passasse nunca ia compreender como é que o ancião podia ser assim tão rude.
Na verdade ninguém poderia compreender porque todos estão sempre tão habituados e dependentes de estar rodeados de tudo o que é supérfulo que não lhes caberia no entendimento que alguém possa viver assim (E ainda por cima ser feliz, que horror, como é possível!! - quase dá para a ouvir as exclamações), com se "assim" fosse de um modo deplorável.

Por isso o ancião apenas ansiava uma coisa. Poder viver tanto tempo quanto quer que fosse o tempo que lhe restava sem que ninguém ali aparecesse para lhe roubar a paz. Todos os dias abençoava ter sido mais um dia a sozinho (mas não "só", que estar só e estar sozinho são coisas bem diferentes). E todos os dias sentava-se no pelourinho antes de ir para o seu casebre e olhava o céu. E todos os dias pensava no que seria que estava no centro do universo.

(15 Novembro 2008)

Imaginário XXXII

Era uma vez, numa época qualquer e sem ter que ter obrigatoriamente príncipes, princesas, cavaleiros, bruxas, poções mágicas, nevoeiros, fadas e tantas outras coisas que embelezam as histórias de infância, um menino.

Este menino era daqueles meninos muito tímidos, muito virados para si, muito metido no seu mundinho, muito entretido com as suas coisas e raramente reparava no que estava à volta dele.

Bem, não seria bem assim.

O menino era muito curioso, muito muito curioso. Ele seguia os carreiros das formigas para ver o que elas faziam, ele contava o tempo que demoravam e chegou até a comer uma para ver a que é que sabia.

Ele olhava o sol pela janela e antes de aprender os movimentos de translação e rotação já sabia de intuição que em cada momento o sol ocupava um lugar diferente. Mas não sabia os nomes. Sabia as coisas.

Então ele sabia muitas coisas que os outros meninos nunca tinham pensado porque estavam sempre a brincar àquelas coisas parvas que todos os meninos brincavam e não serviam para nada. Mas não sabia os nomes das coisas e essas sim, os outros meninos sabiam bem - não as compreendiam nem sabiam como funcionavam mas sabiam todos os nomes de todas as coisas.

Este menino foi crescendo sem nunca ter sentido a falta das brincadeiras. Sentia falta do tempo. Quanto mais olhava para tudo e tentava compreender tudo mais intuitivamente sabia que nunca teria tempo para saber o que estava a seguir.

Um dia uma menina foi ter com ele.

- Olá menino.
- Olá menina.
- Como te chamas?
- Chamo-me o que me quiseres chamar.
- Não tens nome?
- Que importa o meu nome? Eu sou eu independentemente do que me chamares.

O menino pareceu muito complicado à menina, mas também ela sentia algo semelhante, apesar de não ser contra os nomes, ela achava que as coisas deviam ter nomes, só para todos sabermos do que se falava.

- Se virmos desse modo sim, menina, mas até agora nunca ninguém falou comigo das mesmas coisas.
- Queres brincar comigo?
- Brincar? Eu não gosto de brincar.
- Não gostas? Gostas de fazer o quê?
- Gosto de contar estrelas à noite e ver que a cada dia parecem no mesmo sítio mas ao fim de dias as posições são diferentes, por exemplo.
- Essa é uma das minhas brincadeiras favoritas!
- E gostas de apanhar gafanhotos e ver como são as suas patas?
- E carochinhas da areia!!

E o menino e a menina foram brincar.

Ela ensinou-lhe os nomes e ele ensinou-lhe a ter calma e a esperar porque as coisas maiores da vida não se viam ao primeiro olhar ou demoravam tempo a acontecer.

E cresceram juntos. E aprenderam tantas coisas juntos que se esqueceram do resto do mundo.

Quando repararam viviam no mundo deles onde mais ninguém tinha lugar e que mais ninguém compreendia. Mas era o mundo deles. Onde mais ninguém cabia.



Sim, viveram felizes para sempre.

(27 Setembro 2008)

Imaginário XXXI

Era uma vez, num país muito distante, uma rainha.

A rainha não era muito popular, era muito difícil gerir um reino tão grande sozinha e muitas vezes tinha que tomar decisões difíceis e que sabia que iam desagradar aos seus súbditos mas tinha que as tomar.

Um dia, enquanto a rainha chorava secretamente no seu leito por tão tormentosa que era a sua vida, apareceu-lhe uma fada que lhe trazia uma oferenda. A fada oferecia-lhe um espelho mágico cuja magia só se manifestava e era vista pelos olho da rainha. Tudo o que a rainha precisava fazer para que o espelho espelhasse com magia era perguntar-lhe se os outros viam a sua beleza e o espelho reflectiria a imagem que a maioria das pessoas tinha dela.
Mas, disse a fada, se contares a alguém a magia deixa de funcionar.

A rainha posicionou-se em frente do espelho mágico, proferiu as palavras mágicas e teve o resultado mágico. Uma imagem feia, disforme, distorcida e monstruosa surgiu.

Como a rainha ficou devastada... como lhe custava ter que tomar certas medidas para endireitar o reino e principalmente para o manter direito. Será que eles não sabiam? Achariam eles que ser rainha e tomar decisões era fácil?
Eles apenas decidiam sobre as suas vidinhas e bastava-lhes ter conhecimento delas. Ela não. tinha que estar informada não só das vidas deles como de tudo o que se passava no seu reino como de tudo o que se passava no resto do mundo. Às vezes ficava cansada e nem tinha quem lhe desse o conforto de um abraço, porque uma rainha não mostra emoções.

Nessa noite adormeceu embalada pelo som do seu choro e acarinhada pela suavidade das suas lágrimas.

Quando acordou na manhã seguinte, ainda um pouco angustiada, resolveu que ia mudar algo. Queria que a vissem como ela era. Não que a vissem como uma monstra. Os seus súbditos precisavam sentir que nem sempre as medidas boas para eles eram as melhores para todos. Iria sacrificar um pouco o reino mas eles iriam perceber que ela era para eles como uma mãe: eles podiam não concordar com tudo mas para eles ela iria ser bela e insubstituível porque uma mãe toma sempre conta dos filhos o melhor que sabe e quer sempre o melhor para eles.
E se eles não o descobriam " a bem" iriam descobrir "a mal".

Assim, na primeira sessão aberta ao povo, ela não refutou nem argumentou com os conhecimentos que tinha em como o que eles queriam não era o melhor para eles. Não. Ao contrário - assentiu a tudo depois de lhes dar a escolher entre os resultados a curto prazo e a longo prazo. Cada súbdito assinava uma espécie de testemunho em como a pergunta tinha sido feita e ele tinha escolhido o que achava ser melhor para o reino.

E assim foi. Ao início, e para desgosto cada vez maior da rainha - que se ia vendo cada vez mais bela no espelho - o reino estava a tomar as medidas directamente suplicadas. E ela sabia pela sua experiência que mais tarde ou mais cedo o reino ia colapsar. Gostaria que fosse mais tarde e que todos tivessem oportunidade de ver que o modo dela era o melhor para todos, mesmo parecendo o pior.

Aos poucos os súbditos recomeçaram as suas lamúrias. A cada um a rainha sorriu complacentemente e disse que apenas acedia aos desejos de cada um. Que eles haviam criticado antes e optaram voluntariamente por estas medidas, que nada lhes tinha sido imposto.

A rainha via o seu reino degradar-se cada vez mais depressa ao mesmo tempo que no espelho sua imagem era cada vez mais bela mas cada vez mais distorcida também.

Então tomou outra medida. Chamou todos para junto de si e anunciou as principais diferenças entre o antes e o depois das medidas. E anunciou também que iria voltar ao regime anterior.

Nessa noite o espelho não reflectiu. E a angústia da rainha continuava. Queria que a vissem como ela era. Nem ser mais bela nem ser hedionda aos olhos dos outros. Apenas como era: uma mulher destinada por herança a governar um povo que queria prosperar e que fazia tudo para que isso acontecesse.

Passados alguns dias o espelho voltou a reflectir. O espectro ainda era disforme, aparecia menos belo mas ainda assim distorcido.

E com o passar do tempo e com o retorno à sua política o seu reino estava cada vez mais perto daquilo que era o seu desejo.

Ela continuava a analisar e a ouvir o povo mas conforme estava decidido ela tomaria as decisões e não eles.

Um dia olhou-se no espelho e o espelho reflectia a sua imagem nítida. Sem disformidades, sem belezas exageradas sem monstruosidades. Reflectia a mulher que estava diante dele.

Nessa noite, enquanto dormia um sono calmo como há muito não tinha a fada passou e levou o espelho mágico deixando um igual.

E durante todo o reinado da rainha ninguém contestava as suas decisões pois ela estava confiante de si e da imagem que o mundo tinha dela.

(2 Agosto 2008)

Imaginário XXX

Quando Suzette passou naquela rua lisboeta super-mega-fashion hiper-movimentada ficou horrorizada com um pedinte que por lá andava.
Tirou da sua mala mega-dispendiosa (a bem dizer só aquela mala devia chegar para pagar uns mesitos de renda numa pensão pulguenta ali no Martim Moniz) um lenço rendado bordado perfumado que fez chegar ao nariz à boa maneira das damas da corte francesa de um qualquer século perfumado e revirando os olhos aproximou-se do homem.

- Olhe criatura, você está aí todo andrajoso, mete dó, venha comigo.

E a criatura, embasbacada, lá foi atrás de Suzette, entraram no seu Jaguar com estofos de pele, sempre com muito cuidado para não conspurcar a viatura e chegaram à mansão da senhora - dizia-se ela

- Criatura, você tem nome? Que número veste e calça?

Depois de saber as medidas mandou Jarbas, o seu criado pessoal musculado, à farmácia para comprar quitoso e uns produtos de beleza para a criatura que já entretanto se tinha identificado como Norberto e ao costureiro para que lhe desenrascasse uns dois fatos completos, não era preciso ser de gala, fatos assim para o dia-a-dia da criatura, ai, do Norberto.

Entretanto Norberto era enfiado numa banheira, limpo até aos ossos, dentes escovados, cabelo lavado e cortado... enfim, Suzette nem queria acreditar que debaixo de tanto estrume estava uma criatura que até parecia um senhor.
Norberto, coitado, não era tido nem achado e cada vez que ia abrir a boca para dizer que os ideais (a bem dizer já nem se lembrava quais eram tal foram os anos de fome e frio passados na rua) que o levaram a abandonar a vida de ostentação.
A bem dizer tanto apaparico até lhe sabia bem. Começava a habituar-se. Ele sabia que não devia, mas estava mesmo.

Suzette mandou Idalina servir a Norberto uma farta refeição e depois de Jarbas chegar foi tudo aplicadinho na criatura que no fim estava um mimo. Quem o vira e quem o via... é que nem parecia o mesmo.

Suzette mandou aprontar o Jaguar outra vez, ia sair com Norberto. Quando chegaram á baixa pombalina Suzette saiu, pediu-lhe para ele sair, deixou-lhe um fato de reserva e foi-se embora.


Nessa noite dormiu tão descansada com mais uma boa acção feita. Lisboa é uma cidade por demais bonita para se ver conspurcada com pedintes andrajosos, imundos, mal-cheirosos. Um dia haveria de conseguir pôr todas as criaturas impecáveis para a mendicidade.

(19 Julho 2008)

Imagináio XXIX

Era uma vez uma flor que vivia com outras flores num lindo jardim.

Havia flores de todas as cores, de todos os tamanhos, de todos os feitos. Todas as flores eram adoradas por todos.

Mas a nossa flor, a personagem principal da minha história, não se sentia muito adorada. Tinha sempre a impressão que não gostavam dela. Ela via que todos os dias que as outras flores tinham muitos insectos de volta delas, insectos voadores, insectos rastejantes, insectos maiores ou menores, mas todas tinham... excepto ela.

Então a nossa flor vivia muito triste, sentia-se muito só. Ouvia as outras flores rirem e conversarem entre elas e ela... bem, ela nunca se sentiu muito à vontade para meter conversa com elas, é certo. Ela sentia que se dissesse qualquer coisa iria intrometer-se, invadir algum espaço e optava por ficar calada.
Às vezes, quando se atrevia a olhar em redor para outras plantas, se por acaso os seus olhos se fixassem no de outras, tinha a sensação que nem sequer devia estar a olhar para aquele lado. E então sentia-se muito triste.

Um dia, quando um pássaro grande pousou ao pé dela, ela pediu pássaro, podes levar-me para outro sítio? e o pássaro respondeu que poder até podia, mas se a levasse ela morria porque ela tinha uma raiz e se a raiz saísse da terra ela morria de fome e sede. O pássaro viu as lágrimas escorrer pelas pétalas da nossa flor abaixo.
Sabes pássaro, estou tão triste, não tenho amigos, nenhum insecto me visita, estou tão só... e o pássaro disse que era natural. Natural? perguntou a nossa flor, sim, natural, disse o pássaro. Desculpa pássaro, mas não percebo porquê. Eu nunca fiz mal às outras flores nem aos insectos. Pois não flor, mas tu és a mais bela das flores deste jardim e isso assusta as outras flores.

A nossa flor não percebia isso. Eu? Mais bonita que as outras? Não sei, mas não me interessa, isso não é o importante, penso eu. Este jardim precisa de todas as flores para ser o jardim mais lindo, mesmo que elas achem que eu seja a mais bonita, se todas as flores fossem iguais a mim este jardim era muito monótono, não achas, pássaro?

O pássaro tinha a certeza que sim, mas já tinha vivido muito e sabia que ia ser sempre daquela maneira e que muitas flores lhe iam perguntar o mesmo que a nossa flor.
Sabes flor, tu és a mais bela e diz a lenda que para castigo tens espinhos. Que estás condenada a pela tua beleza a ser abandonada pelas outras flores e pelos teus espinhos a que os insectos tenham medo de ti. A tua vida não vai ser fácil, a não ser que encontres um modo de mostrar que os teus espinhos não magoam e que a tua beleza não ofusca.

O pássaro voou para outras paragens. A flor ficou no jardim. Pensou muito no que o pássaro lhe disse e pensou que se era assim tão bonita e ao mesmo tempo tão tímida então seria provavél que as outras flores a achassem arrogante e não quisessem conversar com ela.

Um dia largou um espinho. Doeu muito mas pensou que era um sacríficio para conseguir um amigo. Um insecto aproximou-se e viu que ela tinha perdido o espinho. Começaram a conversar. Quando o insecto espalhou a notícia outros insectos vieram ver o que se passava e a nossa flor pôde mostrar que não era só espinhos e pétalas bonitas, que também tinha sentimentos e que estava só.

O ciúme inicial das outras flores e plantas passou. Começaram a conhecer a nossa flor.

Ainda hoje o jardim vive alegre com harmonia entre todas as flores, insectos e plantas. Todos se aceitam e conhecem uns aos outros. Todos perceberam como as aparências iludem.

(5 Julho 2008)

Imaginário XXVIII

Esta é uma história que se passou há muitos muitos anos, no tempo em que os Homens eram livres , acreditavam no sentiam e acreditavam que era por sentir que o mundo girava.

Quando Ricardo veio a si pensou que tinha morrido. À sua volta bailavam peixes e algas de cores que nunca tinha visto. Ouvia um cantar que o embalava, pensava estar no céu dos pescadores. Reparou que flutuava e sentiu uma paz como nunca tinha sentido antes. Antes de ter tempo de perguntar qualquer coisa uma sereia pegava-lhe na mão e fazia-lhe um sinal como dedo na boca como que para se calar.

Ricardo já tinha ouvido fala em histórias de sereias mas nunca tinha acreditado nelas, eram histórias de alento para quem andava no mar e ajudava a ultrapassar melhor cada tormenta além de proporcionar momentos de riso entre os homens da embarcação.

Não se lembrava como tinha ido parar ali mas depois de pensar melhor nem sabia onde estava.

- Estou no céu?
- Não. Estás no mar.
- És uma sereia?
- Sou a tua sereia.
- A minha sereia?
- Sou aquela por quem tens suspirado ao logo dos tempos, aquela que anseias ter a teu lado quando estás em terra, aquela que queres quando estás no mar.
- Mas eu não sou do mar. E eu não acredito em sereias. Por isso não acredito em ti.
- Mas foste tu quem me procurou. E eu vim ao teu encontro.

Ricardo não se lembrava de nada, mas sabia que não tinha guelras, que não era peixe e que ia acordar do sonho.

- Eu não sou um sonho. E tu não morreste. Mas se me queres não temos muito tempo.
- Que dizes?
- Para ficarmos juntos precisas morrer. Precisas dar à costa para eu ir buscar o teu corpo. Mas se morreres nunca mais poderás ter a tua família, beijar a tua mãe, abraçar o teu pai, balançar os teus sobrinhos no ar, fazer rir as tuas irmãs, ajudar os teus tios na terra quando não estás no mar.
- Mas...
- Mas se não morreres nunca poderemos estar juntos. Tu não sobrevives no mar e eu não sobrevivo na terra. Somos de mundos diferentes. Se morreres tenho um breve momento para te resgatar e trazer para o meu mundo antes que seres de outros mundos te resgatem para o deles. Depois de se morrer é-se resgatado por quem chegar primeiro. Tu és doce. És um homem bom. Terás muitos para te resgatar. E eu ... posso perder-te. Preciso chegar antes que todos. E tu precisas poder reisistir às outras tentações e conseguir esperar por mim.
- No entanto...
- ... Tu não te vais lembrar desta conversa. Os teus sentimentos irão guiar-te.
- E tu? Se eu não for resgatado por ti?
- Eu morrerei. Mas sendo sereia serei resgatada por seres do mar.

Ricardo sentiu-se angustiado. Já tinha perdido a esperança de encontrar a sua mulher. E ali estava ela, um ser do outro mundo que ouvia os seus lamentos. E agora tinha que fazer uma escolha.

- E quanto tempo tenho para decidir?
- Tens enquanto não te sentires a afogar. Porque tu não és do mar.

Nesse instante Ricardo sentiu a pressão do mar sobre si. O peso da água não o deixava respirar. Sentia-se esmagado e não conseguia ver de tanta escuridão. Quanto mais lutava para vir à tona mais fraco se sentia. Num instante deixou de ter medo. Deixou de lutar. E o último pensamento foi para seus pais, nunca lhes tinha dito o quanto os amava.

No farol equipas revezavam-se para ver se viam os destroços. O fumo avistado dias antes não deixava dúvidas que uma embarcação estava em apuros.
O faroleiro viu então um corpo a boiar preso a uma tábua. Correram para a praia.

Todas as famílias lá estavam. A de Ricardo suspirou de alívio quando viu que era ele. Num instante tiraram-no da água e esvaziaram-lhe os pulmões. Ricardo tossiu parte da água e ao abrir os olhos chorou e com muito custo disse

- Mãe? Pai? Amo-vos muito...

Mãe e pai abraçaram-se de felicidade por Ricardo estar vivo.

- Mãe? Pai? Conseguem ver quem me vem buscar?

O curandeiro da aldeia apercebeu-se que Ricardo tinha feito a sua escolha. Nesse momento Ricardo fechou os olhos.

(28 Junho 2008)

Imaginário a mais

Era uma vez

Naquele dia,

Quando abri a cortina

Sentei-me naquele banco de jardim e

Subitamente

Num esgar os seus olhos fixaram-se nos dele.

Foi assim que

...

Hoje não há sushi.

(31 Maio 2008)

Imaginário XXVII

Morreu, provavelmente, do mesmo modo que viveu: sem que ninguém desse por isso. Ou assim se pensou durante algum tempo.

Quando os polícias entraram em casa depois de os bombeiros arrombarem a porta tiveram que sair tal o espetáculo que se lhes oferecia era horrendo. Era difícil conter os vómitos que a visão de tal cena provocava.

- A medicina legal -

No relatório da autópsia consta que já estava morta há muito tempo, tanto que não foi possível determinar.

Os melhores médicos legistas foram chamados para analisar um caso tão raro e interessante, já que todos os orgãos estavam mirrados, secos, o cérebro parecia um balão vazio, as veias quebravam-se ao mínimo toque e o coração, esse, estava literalmente petrificado.
Mas o mais curioso naquele cadáver concentrava-se na vesícula biliar e não se restringia a um pormenor.
Aquele saco, que nas pessoas normais tem a forma e dimensões semelhantes a uma pêra, tinha naquele cadáver o tamanho de uma bola enorme, produzindo o calculado em cerca de 20 vezes mais bile que uma pessoa "normal" e como se isto não fosse bizarro o suficiente, o seu pH revelava uma alcalinidade máxima, fixando-se nos limites quase hipotéticos do valor 14. Mas o mais extravagante, se os aspectos anteriores não fossem por si extravagantes o suficiente, era que o ducto cístico estava ligado directamente ao cérebro. Do cérebro não havia qualquer tipo de vestígio de irrigação arterial ou venosa, saindo sim um outro canal contendo vestígios de bile que se ligava numa rede estranha ao sistema circulatório, deduzindo-se que seria transportada e distribuída ao corpo a partir do que seria suposto ser o cérebro.

Apesar de em ocasião alguma se lhes ter deparado um caso daqueles, nem sequer nos legados dos antigos estudiosos, a medicina em conjunto com a bioquímica conseguiu determinar a causa da morte a partir de um detalhe que quase passaria despercebido: um corte na língua.
Análises porteriores puderam certificar que apesar de lhe correr nas veias tanto fel, esta criatura não tinha o seu sistema inunizado e num simples descuido uma mordidela na língua revelou-se fatal.

O que teria provocado tal corte? Para ter sobrevivido quase 50 anos saberia que o seu fel era letal para si mesma.

- A investigação forense -

A hipótese apontada pelos criminalistas não excluía o suicídio. Ela sabia muito bem o quão venenosa era, conforme resultados de análises encontrados numa gaveta advertiam. Não havia na casa impressões digitais de mais ninguém, o que sugeria que ela era a única pessoa com acesso à mesma. Da interrogação aos vizinhos confirmou-se o seu total isolamento social.

Todos os consumíveis eram adquiridos on-line conforme a equipa de especialistas informáticos confirmou.

Miss F (de fel) não tinha uma única fotografia em casa. Uma única carta. Não havia nada naquela casa que sugerisse que não estava só, nem mesmo os registos informáticos.

Não havia sinais de luta, nem de entrada forçada nem qualquer tipo de feridas defensivas e ninguém tinha ouvido gritos ou ruídos anormais.

- As conclusões -

A análise dos dados forenses e da medicina legal não foi conclusiva.
O suicídio não foi descartado dado o elevado isolamento da criatura e a morte acidental por uma igualmente acidental trincadela na língua também não foi posto de lado apesar de considerado pouco provável dada a elevada toxicidade do fel e a idade dela.

Miss F acabou num caixão de vidro, preservada de modo a poder ser exposta em qualquer sala de aula, museu, conferência ou palestra em segurança - não para ela, autopreservada no seu fel único mas para quem dela se aproximava, curioso, e se expunha aos elevados riscos químicos que dali emanavam.

Nunca antes se tinha visto e nunca se voltou a ver semelhante coisa.

(17 Maio 2008)

Imaginário XXVI

Nessa noite foi difícil dormir. Ali estava ele deitado na mesma cama da mulher com quem, muitos anos antes, uma vida antes, lá do alto da sua juventuda que sorria e preparava a vinda da vida, tinha acreditado que o futuro era brilhante e que com ela... bem... nesta altura já não sabia bem se alguma vez teria sonhado um futuro com ela. Tudo parecia vago.

Pensava nas voltas que a vida dá. Que a vida lhe deu. Uns dão a volta à vida, a outros dá a vida a volta. Que tipo seria ele? Do tipo de "uns" ou do tipo de "outros"? Não sabia. Há muitos anos que viver era um sossego, que es coisas eram estáveis. Que tinha trocado as armas de guerra por ferramentas.

Agora estava ali. Sem ferramentas e sem armas. Qual armadura? Qual arma? Ali, sem um único companheiro de batalha, sem um único colega de vida. Só, com aquela mulher que tendo conhecido tão bem lhe era agora totalmente desconhecida.

As voltas que a vida dá. Ou que a vida lhe deu.

Ali estava ele, deitado de barriga para cima, a olhar para o tecto amarelo do fumo do tabaco. acende mais um cigarro, vê o fumo desfazer-se no ar. E pensa que mais vale não pensar.

Tinha casado com ela há mais de trinta anos, teriam sido alguma vez felizes? Teria sido isso que ele realmente queria fazer? Já nem se lembra. Não há nada que reconheça nela. Nem sequer o sabor amargo do abandono. Nem a alegria dos filhos. Nada.
O reencontro aconteceu casualmente, quando ao sair do trabalho se cruzaram. Do como estás de circunstância dele ao desbobinar da vida dela, vão beber um café.

- Estou a alugar um quarto, diz ela, as despesas são muitas agora que estou sozinha.
- Preciso de alugar um quarto, diz ele - sem acrescentar mais nada - com aquele olhar sombrio e distante que o caracterizava.

Ela pensou que ele não tinha mudado. Ele nunca falava. Ela reconhecia nele o mesmo rapaz por quem, aos 12 anos, se tinha apaixonado.

Ele pensou que ela não se calava, que não queria saber de nada, que eram desconhecidos, que a desconheceu mais tempo da vida do que o tempo que a conheceu.

Depois de tudo acertado ele mudou-se. Deixou um bilhete em casa do filho e da nora a dizer que se tinha mudado para não se preocuparem.

- Sabes a quem aluguei um quarto?, disse ela no domingo seguinte com aquele ar eléctrico que lhe era característico
- A quem?, responde ele sem grande interesse, pouco lhe interessava o que a mãe fazia desde que não sobrasse para ele.
- Ao teu pai.

(10 Maio 2008)

Imaginário XXV

Páscoa. Sábado de Páscoa. Levanta-se à mesma hora como se fosse dia de trabalho. Segue os mesmos gestos mecânicos do resto do ano quase maldizendo ser sábado entre feriados e estar em casa quase como uma obrigação.

Liga a televisão da cozinha para ver o notíciário. Abre o frigorífico, tira o sumo de laranja e dá um gole profundo directamente do pacote. É neste momento que ela entra na cozinha e ainda antes dos bons dias lhe diz que é um nojo fazer aquilo. Que vai baixar a televisão. Que as notícias só dão desgraças e é sábado de Páscoa e ainda são 6h da manhã, anda para a cama, os miúdos ainda dormem.

Sim, os "miúdos" ainda dormem, ser ou não ser sábado de Páscoa é igual, estão de férias e todas as noites vão para a borga com o dinheiro que eu trago para casa, a única coisa que peço em troca de sustentar estes vampiros é que me deixem ter das poucas manhãs por ano que posso ter para mim sossegado, beber o meu gole do pacote como faço todos os dias e ela não sabe, ver as minhas notícias.

- Vou ao escritório.

Dou-lhe um beijinho nas testa, sigo para a casa de banho, tomo o meu duche e faço a barba. Visto o fato, aperto o nó da gravata e saio.

É tão diferente conduzir nestes dias. Devia ser sempre assim. O telemóvel não toca. Estão todos nas suas casas com as suas famílias.Também eu deveria estar. Mas aquela não pode ser a minha família. O que foi que perdi?

Faço contas de cabeça para trás, quero saber onde foi que ao longo daqueles mais de 20 anos deixei de ter vontade própria e passei a ser um andróide motivado pelo trabalho e dinheiro. Subi na vida. Sou respeitado. Tenho o que chamam carreira. Tenho o que chamam família. Vamos a lugares finos onde se entra por convite, sentamo-nos lado-a-lado com a nata da sociedade.

Quantos sapos engoli eu para aqui chegar? Não sei. Nem sei quando foi que os comecei a engolir. A minha "família" nunca sequer pensou como foi que podem ter tudo isto, à custa de quê. À custa de quem. De mim, que vou aqui a conduzir, sábado de Páscoa, em direcção ao escritório para fazer nem sei o quê, apenas fugir, tal como Cristo não pôde fazer enquanto carregava a sua cruz.

Dou por mim a comparar a minha vida de lorde à cruz que Cristo carregou até ao Calvário. Um para bem de 5 pessoas, outro a bem da humanidade. Esbofeteio-me. Como me posso comparar a Cristo? Esbofeteio-me horrorizado com o meu sacrilégio.

Páro o carro ao ver a porta de uma igreja aberta. Entro. Lá dentro o que suponho ser o sacristão dispõe a mesa do altar. Dirijo-me a ele, procuro padre. Está a preparar a missa, diz ele, posso chamá-lo se precisar. Sim - agradeço.

Há anos que não me confessava. Há anos que não "pensava religioso". Saí de lá leve. A solução, por muito que eu não gostasse de a pensar ou materializar sempre esteve ali, a partir da altura em que olhei para a minha família e não reconhecia ninguém e pensava em que ponto foi que a nossa estrada deixou de ser a mesma para se dividir em duas quaisquer tangentes que só na altura da mesada se cruzavam.

Chegou ao escritório. Ligou o computador, abriu todas as suas pastas à procura de si e da sua intimidade. Não havia uma única fotografia de férias com as família. Não havia um único e-mail pessoal. Olhava abismado para o ecrã topo de gama, sentado na sua cadeira ergonómica em pele genuína e com um ligeiro impulso girou-a na direcção da janela. Do seu gabinete via mais de metada da parte ocidental da cidade, quase todos os dias tinha acesso a um pôr-do-sol perfeito e todos os dias o deixava escapar porque "amanhã há mais".

Voltou-se de novo para a secretária e começou a redigir um e-mail.

"Hoje termino de carregar a minha cruz. Quero ressuscitar para a vida."

Assinou-o e enviou. Saiu do escritório. Para o bem ou para o mal a sua decisão estava tomada.

Chegou a casa pouco passava das 11h da manhã. Não sabia como lhe dizer, a sua decisão estava tomada. Não sabia como lhe dizer que queria ressuscitar de toda aquela letargia de anos, que toda a família iria ser afectada mas que esta não podia ser uma decisão conjunta, era algo que ele próprio necessitava para ele.

Esperava que num acto de redenção toda a famíla compreendesse e apoiasse. Saberia que seria uma "prova". Sem apoio e sem compreensão nunca lhes poderia chamar "família". Fosse qual fosse a consequência tinha a certeza que a sua decisão era a mais acertada e a única possível.

- Hoje demiti-me.

(22 Março 2008)

Imaginário XXIV

Hoje é sábado, dia de reunião aqui no sushi, dia de nos "sentarmos" na mesa baixa, dia de expôr uma ideia e alimentar a conversa que todos construimos.

Hoje é sábado e hoje apetece-me vir aqui ao sushi, mas apetece-me ficar em silêncio.

- Não, não tenho nada, está tudo bem.

Hoje é o meu dia de apresentar um tema e de se reunirem à minha volta mas não me apetece que se reunam à minha volta nem me apetece apresentar um tema porque o tema que me invade a mente é meu, íntimo, privado e não quero falar dele, quero ficar no conforto do meu silêncio mas quero vir aqui e sentar-me com vocês e sentir o conforto da vossa companhia e quero ouvir as vossas vozes comungarem do meu silêncio e... quero ficar aqui sossegada, quieta, olhar-vos, ver os vossos gestos.

- Não, a sério, quero apenas estar calada.

Hoje quero estar aqui. Estar, apenas estar. Existir aqui, existir com vocês, em silêncio. Quero fixar os vossos sorrisos, os vossos gestos, as vossas vozes.

- A sério. Posso estar apenas aqui?

Não estou à margem, não me marginalizem. Quero estar aqui e participar silenciosamente. Olhar-vos nos olhos e absorver as vossas expressões, o modo como se entregam ao que acreditam, ouvir-vos falar mais alto no entusiasmo das vossas exposições. Eu sei que é a "minha vez" e que não vim a semana passada.

- Preciso de estar convosco e preciso de o fazer em silêncio. Não estou aborrecida, não estou triste, não estou evasiva. Preciso participar de outro modo.

Porque teimam em querer acreditar que estar em silêncio é sintoma de algo? Sintoma pressupõe doença e não há doença, logo não há sintoma, logo não há problema logo não pintem quadros que não existem.

- Está tudo bem.

Sorrio. Beberico mais um golo. Olho-vos um a um e fixo-vos os olhares, os gestos, as vozes, as expressões, as feições, o entusiasmo, as distracções. Gurado-vos a todos na bagagem da minha alma. Respiro-vos, sinto-vos. Sorrio.

- Obrigada.

(1 Março 2008)

Imaginário XXIII

Foi quando senti o "baque" que fiquei na dúvida se teria adormecido ou não. Pelo levantar brusco da cabeça sim, mas não tinha ideia de ter perdido pitada da viagem.
Depois de parar completamente o carro e garantir que ela estava bem olhámos uma para a outra e para a frente ... e de novo uma para a outra.
Creio que na nossa mente se formou a mesma pergunta: "Mas onde raio estamos nós?"

Ainda incrédulas e olhos nos olhos a primeira reação foi, claro, rir. Depois, já mais calmas, uma de nós disse: "Onde está a estrada?"

Foi bastante estranho. Vínhamos na auto-estrada, era de noite, tínhamos saído de casa.. de casa? A bem dizer eu não me lembrava bem de onde tínhamos saído. Perguntei-lhe: "Lembras-te de onde viemos?" "Claro! Não te lembras que saímos de... não, não me lembro." "Não te lembras de onde vínhamos, mas estávamos a ir para casa, isso eu sei. Viemos pela auto-estrada. Que sítio é este?" "Não sei. Temos aqui o mapa..."
Não a deixei acabar. Isto não era normal. Conhecíamos bem aquela auto-estrada, não havia nenhum aglomerado populacional ali perto, aquela zona era como um deserto, melhor dizendo, uma floresta. De onde tinha surgido aquela aldeia? De onde tinham vindo aquelas casas tão... diferentes, nada características daquela região e muito menos de Portugal.
"Mapa? Sara, tu conheces isto tão bem como eu, isto não existe. Olha bem à tua volta. Estas casas não são comuns, esta vegetação não é comum, esta luminosidade não é comum... NADA do que aqui está é comum! Por isso... ONDE RAIO ESTAMOS NÓS??!" - gritei eu quase em pânico.

Saímos do carro. Não era possível nem sequer avistar a auto-estrada, mesmo que tivéssemos adormecido as bandas sonoras teriam sinalizado que estávamos a desviar a rota. Teríamos embatido no separador metálico. Não era normal, o carro estava intacto, nós estávamos intactas. Lembrei-me deles. Os nossos homens vinham num outro carro atrás de nós. Onde estão eles? Porque raio não buzinaram, porque raio não vieram atrás de nós?

Ao sairmos algumas pessoas vieram ter connosco. Palavras como "Bem vindas" ou "Vão ver que vai correr tudo bem" eram dirigidas a nós.
E nós completamente estupidificadas. Mas quem é esta gente? Como sabiam o nosso nome?

Uma senhora simpática e afável veio "receber-nos"; pediu que fôssemos com ela. Pedimos-lhe que nos deixasse telefonar. Ela sorriu e murmurando que era normal que nos parecesse tudo estranho e ao início fosse um choque nos íamos habituar, que era bom, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça em sinal de assentimento. "Vão ver que... bem, vocês descobrem por vós mesmas."
Os telemóveis estavam "mortos", rede nem vê-la. Era como se tivéssemos entrado na 5ª dimensão.

Queríamos tanto explicar que tínhamos que sair dali, que havia quem esperasse por nós, que estariam preocupados connosco... recebemos em troca sorrisos complacentes de compreensão. Algo se passava.

Fomos recebidas na casa maior onde cabíamos todos. Suavemente alguém nos disse que ninguém nos esperava. (Agora) seríamos nós quem esperaria por alguém. Que com sorte esse alguém se despistaria no mesmo sítio que nós ou num raio próximo e seria acolhido naquele agrupamento.

Afinal o paraíso tinha vedações.

(16 Fevereiro 2008)

Imaginário XXII

Regresso a casa de olhos postos no chão. Chego, pouso as malas, abro a porta, entro, penduro o casaco no cabide de trás da porta, tiro as luvas e o chapéu. Pego nas malas, fecho a porta (nunca reparamos nestes detalhes) e vou lentamente corredor adentro até chegar à suite. As malas que se arrumem.

Entro na sala-de-banho, ponho a água a correr na banheira para um banho de imersão enquanto despejo sais relaxantes de cheiro a frutos silvestres no fundo. Acendo umas velas de cheiro a baunilha com aqueles fósforos longos. Ponho música a tocar. Solto o cabelo, dispo-me vagarosamente e entro na banheira. Afinal de contas não tenho pressa. O tempo não me controla. O relógio, parado há muito, não me apressa.

Imersa na água tépida fecho os olhos e descubro novos caminhos. Desvendo novos mistérios.
Imersa na água tépida esqueço o mundo, aquele lá fora, aquele que começa na minha pele, que é frio, distante, etéreo, aquele que critica, rejeita e julga e vivo o meu mundo de liberdade e satisfação.
Imersa na água tépida deixo-me adormecer e sonhar com outros mundos.

Acordo gelada, de pele encarquilhada quando a música acaba. Lá fora é já de noite. As velas estão no fim, consumidas de si mesmas.
Desperto e regresso ao mundo, ao mundo que não é o meu e não é o vosso, ao mundo que todos acolhe e todos rejeita.

A sala-de-banho está acolhedora. O cheiro doce envolve-me enquanto visto o roupão e troco de música.

O corredor, escuro da cor da noite, acolhe-me os passos como sempre, faz a sua vénia à minha presença e abre-me as portas da casa que me descobre na penumbra e se deixa explorar pelos meus passos suaves.

Entro no quarto de vestir, desfaço as malas vagarosamente e volto a adaptar-me ao meio. Tranquila reponho as peças de volta ao seu lugar com a precisão metódica habitual.

Regresso então ao corredor que me leva ao quarto de dormir onde a cama confortável me espera. Deito-me e fecho os olhos na busca de descanso desta viagem.

Cada dia é como o primeiro porque nunca sabemos quando será o último.
(30 Janeiro 2008)

Imaginário XX

- Posso entrar? Disse eu de forma discreta. Preciso falar acerca de... bem...

Não percebo porque é que é sempre tão complicado dizer o que pensamos. Devia ser o mais simples, dizer o que nos vai na cabeça, e nunca é. Porque não sabemos que ouvidos nos vão ouvir. Não sabemos que olhos olham para nós.

Ao entrar na sala enorme e quase vazia olhei os presentes e antes de dizer qualquer coisa que fosse fiz uma análise rápida do que poderiam eles ouvir da minha mensagem.

Um estava com cara de quem estava desligado do mundo. Provavelmente hoje o som entrar-lhe-ia pelos ouvidos e amanhã fosse perguntar a alguém que é que realmente tinha sido dito.
A outra andava lá, toda atarefada de um lado para o outro. Sempre stressada, com medo que o mundo acabe amanhã sem perceber que se acabar amanhã não vale de nada andar a stressar e mais vale aproveitar.
Havia outro lá no canto, o eterno desconfiado.

Olhei rapidamente para qualquer um deles e pensei que cada um ia ouvir a minha mensagem da sua maneira. Cada um com os seus feitios, cada um com as suas vidas fora dali, cada um com os seus pequenos dramas sempre enormes aos seus próprios olhos, como se de um concurso se tratasse e ganhasse quem pior vida tinha.

O certo é que nem sequer era só disso que eu estava cansada. Sabia que me iam perguntar o porquê e esse nem sequer era o grande "porquê", era apenas uma parte de um todo imenso. O certo é que perante toda aquela gente com quem lidei durante tanto tempo nunca seria capaz de enumerar uma razão que não fosse melindrar ninguém apenas porque, só por informar a decisão, alguém iria sentir-se mais susceptível, quem sabe se até mesmo ofendido.

Quanto mais pensava nisto numa fracção de segundo mais me apercebia que tinha resposta à minha pergunta. Que nos custa dizer realmente o que vai na alma porque alguém vai pedir uma justificação, porque alguém vai sempre ler segundo os seus olhos e ouvir segundo os seus ouvidos. É realmente complicado dizer o que pensamos.

Quando consegui a atenção de todos acabei finalmente por dizer que me ia embora.

- Embora?
- Sim, vim despedir-me.
- Então até amanhã. As melhoras.

E rapidamente voltaram costas. Ela continou stressada como se amanhã o mundo fosse acabar e precisasse ter mil coisas feitas para quando o mundo acabasse seja quem for que viesse depois do mundo acabar ver que ela era eficiente e deixou o mundo arrumado e preparado para o caos que vinha a seguir ao mundo acabar. Eles continuaram os dois sabe-se lá a fazer o quê. Um distraído como se o mundo já tivesse acabado e não soubesse e outro desconfiado. Desconfiado talvez de que o mundo ia acabar e ela não lhe dizia ou então que já tinha acabado e ele não lhe dizia.

Fechei a porta ao sair sem saber se teria efectivamente acabado aquele mundo para mim ou se não.

(9 Janeiro 2008)

Não imaginário I

Eu ainda sou do tempo em que o Bolo-Rei tinha um brinde e uma fava.

Toda a gente olhava muito bem para o bolo antes de cortar a primeira fatia. Todos procuravam atentamente o rasto da fava ou do brinde. Se detectassem o brinde tiravam uma fatia desse sítio. Se detectassem a fava tiravam mais ao lado.

Havia conversas em sussurro à volta da mesa "por acaso já viste onde está a fava?"

Depois de tirada a primeira fatia olhava-se para as duas "frentes" que o bolo tinha visíveis. Os palpites, as apostas.

Eu ainda sou do tempo em que havia quem comesse a fava para não ter que pagar o próximo bolo.

Quando chegava a última fatia e a fava ainda não estava ao pé do bolo essa fatia demorava muito tempo a ser comida. Havia quem a quisesse comer às escondidas.

Para mim era uma espécie de brincadeira.

Às vezes eu ficava com a fava e todos se riam, e eu ria também, porque sabia que era mau, mas não sabia porquê.

A minha avó fazia colecção dos brindes do bolo. Quando me calhava eu ia dar-lhe. Ela ainda tem a colecção lá em casa.

Eu sou do tempo em que só havia um Bolo-Rei na mesa porque eram muito caros.

Eu sou do tempo em que o Bolo-Rei tinha uma fava e um brinde.

Nesse tempo éramos todos mais pobres. Esse é o tempo que eu tenho saudades.

(19 Dezembro 2007)

Imaginário XIX

Ela era uma miúda esquisita. A sério que era, se vocês a vissem também iam achar o mesmo. Eu sei que pessoas diferentes têm opiniões e gostos diferentes mas acho que iam concordar.

Pela aparência teria quê... uns 19, 20 anos. Pela aparência devia andar por aí a nadar em dinheiro. Roupinhas de marca, tudo do bom e do melhor. Carrito próprio e sem querer ser má língua era um carro bonzito, não era um chaço qualquer.

Tinha o seu grupo de amigos, igualmente esquisitos e igualmente aparentemente abastados, mas para ser sincera ela não parecia muito enquadrada nesse grupo.

Bem, eu via-a às vezes no bar. Nunca falei com ela mais do que um "com licença" ou um "podes passar-me o coiso dos guardanapos?". Ela tinha assim um olhar que... sei lá! Os olhos dela entravam para dentro dos nossos e liam-nos a alma. Claro que era arrepiante, né?

Começou a circular na faculdade (a rapariga até tinha boas notas) que ela vinha de famílias ricas, que não batia bem, que o pai andava em negócios obscuros, enfim, os boatos do costume.

Aos poucos foi-se afastando do grupo com quem se dava. Começaram os rumores que à noite "estudava anatomia no técnico" e de dia "dedicava-se à jardinagem e transformação de produtos herbícolas".

Um dia não apareceu na faculdade.

Quatro dias depois, uma segunda-feira, a senhora da secretaria (nunca ninguém sabe o nome delas, são sempre as "senhoras") contacta o regente do departamento de Física. Fiquei a saber porque ia entrar na biblioteca na altura em que ela vem com o que parecia ser um e-mail imprimido na folha que ela levava na mão e acenava para ele, mais branca que a folha.

Claro que fiquei a cuscar. Não era todos os dias que ia à biblioteca daquele departamento e muito menos que havia agitação.

- Dr. Filipe... Ai Dr. Filipe... já sabemos da Claúdia.

Nem consigo descrever o olhar do Dr. Filipe para a senhora da secretaria. Se eu conseguisse, se eu tivesse palavras para dizer o que é possível acontecer num microssegundo... O Dr. Filipe ficou aliviado, feliz, desvanecido, branco, transparente e desmaia. Isto, num microssegundo.

Enquanto a senhora da secretaria pedia ajuda e o pessoal vinha a correr ver o que se passava eu peguei na folha de papel:

"Estamos em 20 de Dezembro. Este ano não vou ser capaz. O peso que trago comigo é muito e leva-me para o fundo.

Não consigo, posso ou quero desfazer-me dele a tal ponto que é ele quem me desfaz.

Hoje, finalmente, ganho coragem, deixo-o desmembrar-me e permito-me dissolver naquilo que um dia foi a minha vida.

Por favor, avise o Dr. Filipe . A caixa de mail dele está cheia, em casa não atende e o telemóvel vai sempre parar ao gravador.

Avise-o o mais depressa possível pois a nossa experiência precisa de ser seguida.

Obrigada, Claúdia, aluna nº45330F, turma 3, Astrofísica
"


Enquanto isto acontecia na faculdade já a polícia entrava em casa dela e o médico legista tirava o seu corpo da banheira onde tinha cortado os pulsos. Ao lado jazia uma aparelhagem que tocava incessantemente a mesma música e um copo de vinho do porto, quase vazio.

E agora, enquanto o Dr. Filipe deita, visivelmente abalado, um punhado de terra sobre o caixão, enquanto olho para quase toda a faculdade em peso em redor desta campa, agora que já sei parte do que se passou, sinto-me indescritivelmente mal, egoísta, fútil. Na minha vidinha que continua não tive espaço, tempo ou vontade de sequer querer perceber porque é que ela parecia uma miúda esquisita.

E numa culpa consumista que me martelava a cabeça não conseguia deixar de pensar que nunca tive tempo de saber que ela já não tinha a quem deixar um bilhete.

(12 Dezembro 2007)

Imaginário XVIII

Cheguei àquele sítio sem ter ideia de como foi. Tinha a nítida sensação de ter percorrido quilómetros mas não me sentia cansada nem com fome nem com sede. Apenas tinha a sensação de ter andado muito.

Não me lembrava do início da viagem. Não me lembrava de onde partira, nem a que horas, nem se tinha partido sozinha ou acompanhada.

Quando olhei em volta tudo o que vi foi uma imensa extensão de cinzento. Cinzento do chão, que era liso, fastidiosamente liso e cinzento. Tudo o resto à volta era negro tirando uma fonte de luz que nuca percebi de onde vinha. Cada vez que olhava para cima aquela luz imensa fluorescente, que dava um ar de certo modo fantasmagórico à cena, movia-se também, de modo que nunca vi de onde vinha.

Dei um passo. A luz moveu-se. Parei. A luz parou. Corri um pouco, a luz correu comigo. Virei-me de repente mas ela foi mais rápida que eu. Não adiantava, não iria descobrir o que era ou de onde vinha.

Continuei a caminhar na direcção para onde me dirigia originalmente, sem saber como é que sabia que era para li ou até o porquê de ir para ali. Afinal, até perder de vista tudo não passava de uma enorme extensão de chão cinzento e liso numa atmosfera de escuridão.

Andei. Andei muito, sem ter a noção da distância ou do tempo. Andei até chegar ao "fim". Tudo à minha volta e para trás continuava a ser uma enorme extensão de chão cinzento e liso mas à minha frente e prolongando-se até ao infinito para ambos os lados estava o "fim".

Espreitei para ver como é que era o "fim". Espreitei com cuidado. O "fim" era como que o vértice de um degrau gigante, do qual eu não conseguia avistar o fundo.

Virei-me para trás. De um lado tinha uma extensão infinita de chão liso e cinzento. Do outro tinha um degrau infinito. Tudo cinzento, liso, estéril. Completamente estéril, estava completamente só no infinito cinzento e negro.

Enquanto pensava o que fazer surge nas minhas costas uma mão gigante. Só mesmo a mão, sem braço, sem corpo. Uma mão em posição de "apontar", com o dedo indicador esticado e os outros dedos recolhidos. Senti um toque nas costas. Desequilibrei-me e cai.

A queda pareceu infinita. Se ao início estava com medo, a dada altura apercebo-me de que à velocidade que eu estava a cair nem iria sofrer se alguma vez chegasse a embater em alguma coisa. O medo passou e comecei a sentir-me bem com aquela queda.

Quando me comecei a sentir bem e a entregar à queda sinto um obstáculo e o meu corpo a embater violentamente em algo. Afinal a queda teve fim.

Pensei que estava toda despedaçada. Mas não. Levantei-me, olhei em volta. Pude tocar no tal degrau. À minha frente uma extensão estéril e infinita de chão cinzento e liso num ambiente de escuridão a perder de vista. A minha luz fluorescente acompanhava-me ainda.

Sacudi-me, endireitei-me e recomecei a caminhar.

(5 Dezembro 2007)

Imaginário XVII

Sentei-me à secretária depois de a ter limpo cuidadosamente.

O estado de caos em que se encontrava não me permitia ter o mínimo de concentração. E como eu precisava de concentração. Precisava de me concentrar não tanto para escrever mas para separar os sentimentos que se começavam a aflorar, a invadir o “meu” espaço intelectual, sentimental, emocional de segurança. Se não conseguisse acalmar estes sentimentos que emergiam que nem monstruosos seres hediondos dentro de mim corria o risco de ser mal interpretada. De não dizer o que realmente queria. De me perder em detalhes que não eram o mais importante.

Assim comecei por limpar a secretária. Com o antebraço afastei toda a papelada e objectos que se iam acumulando lá em cima. Tudo o que eu ia depositando enquanto dizia “a ver se um dia destes dou um jeito nisto”. Hoje era “um dia destes”.

Apesar de saber exactamente onde estava cada coisa preferi mandar tudo para o chão. Deixar que os objectos se misturassem para que eu não soubesse de olhos fechados onde estavam. Tinha que perder esta mania de caos organizado, tinha que perder esta mania de que “eu sei onde está tudo e quando começar a arrumar mentalmente sei onde vou pôr cada coisinha” porque era por causa de pensares destes que cada as coisas se iam acumulando cada vez mais.

Por isso tomei esta decisão. Apesar de ter muita pressa para escrever para não me esquecer de nada do que queria dizer-te, preferi arrumar primeiro. Arrumar a secretária, arrumar os sentimentos.

E não me perguntes por que é que arrumar esta me ajuda. Não me perguntes porque preciso de a desarrumar para a voltar a arrumar. Não me perguntes porque é que, estando arrumada pelos meus padrões precisei de alterar tudo para colocar as coisas em sítios diferentes e porque é que isso tinha que ser feito antes de escrever.

Só sei que quem olha para ela a vê arrumada. Arrumada e limpa. Eu sei que está tudo mais caótico que antes. Agora não sei onde estão as coisas. Mas enquanto as “desarrumei” ordenei outras coisas, agora os sentimentos estão arrumados.

No fim fui buscar uma vela de cheiro.

Está aqui do meu lado direito. Alumia e aquece. Olho para ela e perco-me a ver a sombra da chama na parede, as formas que a cera forma ao derreter. E começo a escrever.

(28 Novembro 2007)

Imaginário XVI

E no início é rocha. Bruta, potencial, maciça, disforme, oculta.

No ínicio é rocha, coesa, agregada, firme, imutável.

No início a rocha é imponente, com todos os seus minerais agregados, unos. A rocha é una. Bruta, coesa e una.

E depois vem o vento. E depois vem a chuva. E depois vem o sol. E depois vem o vento e a chuva e o vento e o sol e o sol e a chuva e o vento.

E a chuva descobre uma falha. E sempe que chove passa a ocupar esse espaço. E a rocha deixa de ser coesa. E deixa de ser una. E depois vem o sol e leva a água. E fica o espaço, desocupado de rocha, a cicatriz. A primeira. Depois da primeira a segunda... e num instante a rocha fica minada.

Já não é una: parece. Já não é sólida: parece. Já não é resistente: parece.

Um dia cada fenda, cada cicatriz começa a juntar-se a outras fendas fazendo cicatrizes cada vez maiores. Um dia as cicatrizes maiores são tão grandes que a rocha se desmembra. Vai-se perdendo de si.

Aos poucos vai-se fragmentando em pedaços que variam conforme a cicatriz.

A rocha vai rolando por si abaixo.

E a chuva e o sol e o vento não páram. E chegam todos os dias. E fazem mais cicatrizes. E fazem novas cicatrizes nos pedaços de rocha que se soltam.

A rocha é agora um conjunto de pedaços de si mesma. Cada pedaço que se solta torna-a mais vulnerável. Cada pedaço de si que se solta e rola, ajudado pela gravidade, ajudado pelo vento, pela chuva.

Um dia, se a rocha deixar, se as suas cicatrizes deixarem, ela aceita-se desmembrada e aceita-se fértil.

Um dia, depois de muita chuva, depois de muito sol, depois de muito vento, que a transformam, moldam, dividem, fragmentam, quebram... um dia, depois da dor passar, quando ela já anestesiada se vê amaciada, um dia... ela gerará vida.

E esquece os pedaços de si que vão rolando. Rolados pelas colinas, levados pelos rios, lançados nas praias... pedaços de si que estão longe. Cada vez menores, cada vez mais fragmentados, cada vez mais frágeis.

Cada pedaço que se parte e solta, anguloso e vivo, é um pedaço frágil que se julga novo e resistente. Cada pedaço não sabe que apesar de cheirar e ter cores novas está a caminhar rapidamente para o fim.

E cada pedaço estagna num areal. E permanece os seus dias rolando em cada espriaio, voltando a cada ressaca.

E cada pedaço nem percebe que está a mirrar.

Já não tem memória da rocha imponente, coesa e una que foi, há tempos. Agora vê-se disperso num areal que ainda não é o seu e que foge debaixo de si, cada vez mais fino, para o mar. Também esse areal foi, em tempos, uma rocha... Também esta rocha vai ser, um dia, um extenso areal...

(7 Novembro 2007)

Imaginário XV

Os avós traziam, sempre que vinham a Lisboa, umas coisinhas para eles. As batatas lá da terra e o mel vinham sempre, as outras coisas variavam conforme a época do ano. Daquela vez traziam favas. Fava nova, na casca, uma saca delas.

O pai levava a saca para o barracão que havia no quintal, um quintal diferente do normal, era mais elevado que a casa. Subiam-se as escadas e estava-se como que noutro sítio.

Ela nunca gostava de ir fazer "coisas" que o pai dizia, mas quando era ir ao quintal gostava muito. O quintal parecia outro mundo, havia sempre qualquer coisa para ver.

Mesmo sem lhe dizerem nada ela sabia que havia que descascar as favas e a saca era grande, tinha trabalho para umas tardes depois da escola. Na escola não falava aos colegas das favas, a maioria não sabia o que era descascar nem favas nem ervilhas nem feijões... pensavam, provavelmente, que vinham de um qualquer sítio já meios secos ou congelados. Para os colegas essas coisas surgiam no supermercado. Se calhar eles pensam que nasce nos supermercados, dava ela por si a pensar enquanto descascava as favas.

Numa das tardes de descasca, a reparar que já há imensas favas que estava a pôr as cascas com as favas e as favas com as cascas viu algo a mexer pelo canto do olho. Parou e olhou na direcção do movimento. Ouviu um ruído. Lentamente levantou-se e foi ver o que era. Não mexeu em nada, espreitou e viu um minúsculo ser branco. Parecia uma bolinha de pêlo. Conseguiu aproximar-se e ver que era um rato. Um rato, pequenino, com pêlo branco como a neve e olhos vermelhos, uma cauda longa. Assustado.

Pegou nele e pô-lo numa caixa de ténis. Foi buscar-lhe comida. Passava longos minutos a olhar para ele. Precisava dar-lhe um nome.

No dia seguinte foi lá. Não estava. Chamou pelo ratinho branco mas ele não estava. Sentou-se no banco, olhou para a saca das favas mas não lhe apetecia descascar. O ratinho branco veio ter com ela. Afinal estava lá. Deu-lhe a comida, mudou-lhe a água. Agora tinha um amigo.

Os dias foram passando. Uns dias ele estava na caixa outros dias saía, mas quando ela chegava ele vinha ter com ela. Até que um dia não foi. Nem no outro, nem no outro. Ela chamava pelo ratinho branco e ele não vinha. Ela punha a comida perto dos sítios preferidos dele e ele não vinha. Naquele sítio não se sentia a presença dele.

Ela começou a andar mais triste. Olhava pela porta de vidro que dava para o quintal na esperança de ver o Ratinho Branco passar, mas nada. Um dia, o pai, ao vê-la olhar tanto e desconfiado de tantas idas ao barracão disse-lhe:
- Deitei o teu rato fora.

Ela sabia que não adiantava chorar ou reclamar, o pai não voltaria atrás. E mesmo que voltasse, o Ratinho Branco já não ia querer ser amigo dela, de certeza.

(31 Outubro 2007)

Imaginário XIV

Lembro-me de ver aquela rapariga todos os dias. Bem, ou pelo menos quase todos. Já nem sei há quanto tempo a vejo. É difícil não reparar nela e atenção, não interpretem isto de modo leviano. É difícil não reparar nela porque ela passa totalmente despercebida.

Creio que é daquelas que se tentam mimetizar no meio da multidão. Quer dizer, é só uma ideia, não sei. Que mania que temos de olhar para as pessoas, especialmente aquelas que nos habituamos a ver sem nunca lhes tocar, sem nunca ouvirmos a sua voz, nem nunca receber um olhar directo nos olhos... bem, neste último caso nem é bem verdade porque às vezes os nossos olhares cruzam-se de vez em quando e devo dizer que o olhar dela me incomoda. Não é que transpareça maldade ou que demonstre ficar chateada ou importunada. Mas é um olhar tão profundo, penetrante e insistente, como se desafiasse, que tenho mesmo que desviar os olhos dos dela. Chega a dar-me a sensação de que para ela estes olhares nos olhos são um desafio e quem acaba por sentir o incómodo como se da invasão da alma se tratasse sou eu.

Seja como for, estava eu a dizer que a impressão que me dá é que ela se quer fazer confundir com o meio, como se desejasse ser camaleão... até vou mais longe. Quer-me mesmo parecer que se ela pudesse seria mais que camaleão... como explicar? Que se ela pudesse estaria no meio da multidão a observar toda a gente, perfeitamente visível mas sem deixar que ninguém a visse... como se fosse possível...

O que me chama a atenção nela é o facto como ela até parece fazer para repudiar os olhares dela. Acredito que não se apercebe de como acaba por ser alvo de tantos olhares. Olho para todos à minha volta e reparo que todos a olham também e enquanto penso no que ela estará a pensar penso também no que os outros estão a pensar sobre ela, se será o mesmo que eu. Penso ainda quem é que a vê há mais tempo que eu e a analisa há mais tempo e julga compreendê-la há mais tempo e quem é que a vê há menos tempo e nesse “menos tempo” já sabe mais sobre ela que eu, e desses eu sinto ciúme.

Que coisa parva - digo para mim logo a seguir - Que coisa parva sentir ciúme de pessoas que não conheço. Devo estar a ficar lélé - é o que me vou repetindo. E no entanto queria ser só eu a compreender o que ela pensa, sente, quer, sonha, deseja...

(17 Outubro 2007)

Imaginário XIII

Entrei na cozinha. Já atrasada. Muito atrasada.

Lavei as mãos a correr. Peguei no avental ao mesmo tempo que abri o frigorífico e enquanto uma mão tirava o que ia precisar a outra ia enfiando o avental pela cabeça abaixo.

Estava com aquela sensação que faltava qualquer coisa. Revi mentalmente a receita a que já me habituei a fazer olhando para o balcão. Não... tudo a postos. Assim de repente não faltava nada.

Arranjei, cozinhei, preparei. Sempre com a sensação de que faltava alguma coisa. Servi. Sempre a pensar no que faltava.

Servi. Comi. Comemos. Afinal, estava ali. Era para se comer. Antes que ficasse frio. Comemos. Comemos até ao fim. Comemos, repetimos, e sem nos saber bem não nos soube mal.

No fim não soubémos dizer o que faltou. Faltava qualquer coisa. O travo foi diferente, que foi.

Estava lá tudo mas faltou qualquer coisa.

(19 Outubro 2007)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Imaginário XII - adaptação do imaginário de alguém

Era uma vez uma cidade azul.

As casas azuis resplandeciam com os seus telhados azuis que brilhavam e reflectiam a luz azul do Sol azul. As crianças azuis, brincavam alegremente na cidade azul. Os pais azuis iam nos carros azuis para os trabalhos azuis com as suas roupas azuis.

Na cidade azul todos eram azulmente felizes. Os pássaros azuis chilreavam nos ramos azuis do topo das árvores azuis, volta e meia voavam para apanharem minhocas azuis enquanto as "pássaras" azuis chocavam os seus ovos azuis.

Os cães azuis passeavam pela relva azul, rebolando-se de felicidade, perseguindo gatos azuis que miavam, de noite, à lua azul.

As flores azuis deitavam um aroma fortemente azul na primavera, no outono as folhas secas azuis deixavam-se desfalecer a pousar suavemente nos passeios azuis e o manto azul crispava sob os passos dos habitantes azuis da cidade azul.

Na cidade azul todos eram azulmente felizes.

Um dia um forasteiro vermelho entrou na cidade azul. Todos os habitantes azuis olharam para a pessoa vermelha e o medo apoderou-se deles. Os seus longos cabelos vermelhos, os seus trajes vermelhos, os seus sapatos vermelhos... tudo era estranho para os cidadõas azuis da cidade azul.

Cercaram o viajante vermelho com cercas azuis.

O viajante vermelho foi então interrogado ferozmente pelos polícias azuis da cidade azul:

- O que estás a fazer nesta cidade? Tu não pertences a esta história.

(3 Outubro 2007)

Imaginário XI - o anti imaginário

Há muitos anos (é o que dizem) havia uma linda donzela (também é o que dizem). Essa donzela premeteu que nunca iria interromper o seu crochet até chegar o seu príncipe encantado. As amigas dela diziam-lhe para ela ir para a night mas ela preferia ficar lá no cimo do castelo. Queria entrar para o guiness, mesmo que o rei seu pai se estivesse nas tintas para isso.

"Ó filha, preciso que cases com o Fréderic por causa de uma aliança."

"Ó papá, desculpa lá mas eu fiz esta promessa a nossa Senhora e não posso quebrar. O Fréderic não é o meu príncipe."

O rei já não sabia muito bem o que fazer, até porque aquele crochet estava a tornar-se interminável. Já tinham percorrido o reino todo à procura de novelos e a recessão por causa da falta de aliança com o reino de Frederic estava já num ponto tão mau que os impostos eram pagos em fio de algodão para que a donzela nossa princesa continuasse a cumprir a sua promessa.

Um dia, já metade do reino tinha sido transformado em campo de cultivo de algodão, não com muito sucesso por causa do clima, mas pronto, o papá rei perguntou como raio é que ela ia saber que era o seu príncipe se nunca saía de casa, nunca ia ao shopping, nunca ia para a night, não conhecia ninguém, nem sequer tinha ido para a faculdade.

"Ó papá, vê-se logo, então... ele vai mandar-me um mail a pedir para ser meu amigo no Hi5!"

"Mas ó filha, nós não temos internet!"

"Ó papá, mas isso é porque ainda não inventaram computadores. Vais ver que mais dinastia menos dinastia tudo se resolve."

O rei já não sabia o que fazer.

Resolveu entregar a regência ao seu melhor amigo e reformou-se. Foi para Marrocos e deu início à maior plantação de Cannabis do planeta. Ainda hoje é possível ver, sobrevoando os campos que foram seus, mensagens de pedidos de auxílio como "por favor, se és príncipe liga para o castelo da donzela Amarela e diz que és quem ela espera. Dão-se alvíssaras, pagas em Haxixe."

As amigas da donzela tornaram-se groupies da banda de trovadores e pensavam que todas as músicas lhes eram dedicadas. A dada altura os trovadores resolveram casar com elas só para elas ficarem em casa com os miúdos.

A mãe da donzela foi para um lar de qualidade, ou pelo menos era o que dizia a publicidade, já que quando lá chegou veio a descobrir que a Lili Caneças estava lá cheia de adesivos para lhe segurar a cara. Processou a empresa de publicidade e com o dinheiro que recebeu de indmenização de danos morais e visuais abriu uma escola de aeróbica.

Quanto à princesa donzela Amarela, das duas uma: ou nenhum príncipe sobrevoou a área de plantação ou nenhum deles queria haxixe porque a donzela nunca saiu da torre. Também nunca ficou só, já que recorria frequentemente a serviços de acompanhamento, conforme a PJ veio a descobrir depois de investigar as contas do reino. Veio a descobrir-se também que ela passava largas horas ao telefone como padre Jeremias, já que toda a situação da promessa e depois os acompanhantes a faziam sentir-se pecadora, mas por causa dos quilómetros de crochet que já tinha não conseguia sair do quarto. Felizmente lembrou-se de deixar vaga a janela e recebia comida por lá.

E pronto. Foram felizes para sempre. Ou então não, mas também já ninguém se lembra.

(26 Setembro 2007)

Imaginário X

José, conhecido lá na empresa como Zézito por ter começado a lá trabalhar há tantos anos que nem ele se lembra, aguardou um pouco à porta do gabinete do director geral.

Quando foi trabalhar para aquela empresa eram poucos. Havia o Manel, o Tó, o Costa, o Álvaro, já reformados nesta altura, o Costa e o Tó já falecidos que nem tiveram tempo para gozar a reforma que foram logo levados "e por isso é que eu trabalho, parar é morrer!" - dizia sempre o Zézito - a Amália, a Mani, a Litas. Também elas já foram, a última vez que soube delas estavam a Litas com a família, a Amália num lar e a Mani tinha emigrado há anos, lá para África do Sul, ajudar o genro e a filha que tentavam uma vida nova.

A empresa já não era como ele a tinha conhecido: familiar, com gente amável, o dono a quem nunca tiveram problema em recorrer "que se for preciso, "xô" Filipe, já sabe que estamos cá e conta connosco! "
Nessa altura faziam-se festas no Natal. As esposas e esposos eram convidados, os filhos ficavam em casa e confraternizava-se como se de "iguais" se tratasse, até que o "xô" Filipe morreu de doença agravada e tudo mudou.

Zézito recordava alguns destes momentos de coração palpitante. Os seus ouvidos voltavam a encher-se de música e os seus olhos viam com nitidez o Sr. Filipe Paiva e a esposa a abrir o baile, as mesas com bolinhos e copos de bebidas diferentes. Nessas alturas não conseguia evitar que uma lágrima pesada, teimosa e irrequieta lhe descesse face abaixo para logo a seguir sentir o molhado nas mãos "olha agora, ó Zézito, então dá-te para chorar?" e logo passava o lenço de pano gasto pelo tempo nos olhos.

Agora tudo era diferente. Desde que o Sr. Filipe tinha morrido e que os filhos venderam o sítio que tudo era diferente. Tinham conseguido que eles lá ficassem, "eles", os velhos que ainda "vêem do tempo do paizinho... se os mandamos embora para onde é que vão?".

Estes miúdos novos que mandavam nisto agora não tinham respeito por ele nem pelos outros. Se a ele se preparavam para o despedir, aos outros preparavam-se para os substituir. Se a ele lhe tinham arrancado a sua rotina e achincalhado a sua dignidade, aos mais novos tiravam a vontade de prosseguir a cada dia que passava. As queixas eram muitas, as condições quase inexistentes.

Zézito era o único que restava de um tempo glorioso que aquela empresa viveu, sabia que todos o que formavam a outra parte do que considerava ser a sua família já tinham partido e ele estava só.

Em casa Zézito tinha visto Deus levar a sua Mina depois de meses de sofrimento em que não saiu de ao pé dela. Já na altura só a tinha a ela, que foi para junto de Deus e dos dois filhos que a febre levou, tão pequenos e frágeis eram, que nunca o desgosto lhe passou.

Agora Zézito aguardava a reforma para ir morar com a irmã e o cunhado lá para os lados de Portalegre, que a velhice quer-se perto da família para ter alguém na hora da morte.

Zézito estava à espera à porta do director geral quando sentiu o chão tremer. Desequilibrando-se caiu desamparado, algo lhe bateu na cabeça e antes de perder os sentidos ainda sentiu o quente do sangue escorrer pela cara e pingar no chão. Ainda conseguiu ouvir alguns berros de medo, pensou ele, enquanto tentava dizer que era só um abalo, logo passava... mas já não conseguiu.

À porta do gabinete veio a correr o Engº Silva. Chamou imediatamente uma ambulância.

Zézito teve direito a um funeral com pompa e circunstância. O Engº fez um discurso. Flores foram atiradas para a cova. Um punhado de terra. Uma oração.

(19 Setembro 2007)

Imaginário IX

Durante muitos anos passei por aquele sítio. Já tinha ouvido que teria sido uma escola... uma prisão e até um talho.

Um dia entrei. Hoje em dia é um "comes e bebes". Bolos muito bons, vista ainda melhor.

Subi as escadas. Sentei-me à janela.

Demorei o olhar sobre o forte, coberto de heras que escondem pedras sólidas e centenárias, imaginando quantos lá viveram e o que lá fizeram. Quantos barcos viram chegar, quantos abraços deram, quantas lágrimas choraram.

Fixei o olhar no rio, olhei a outra margem, o areal, as gaivotas, os barcos.

Lá em baixo ouvem-se crianças a correr e vive-se o dia-a-dia da vila.

Sentada à janela imaginei-o na escola. Pequeno, franzino, imaginei-o traquina... não sei porque o imaginei traquina. Ele, que era tão calmo e compreensivo. Mas imaginei-o traquina, distraído, bom aluno e cumpridor. Apenas reguila. Imaginei-o a falar com o colega da carteira mais próxima, imaginei uma professora de carrapito branco, óculos na ponta do nariz, o mapa de Portugal pendurado ao lado do quadro de ardósia e os meninos sentados a aprender as lições.

Imaginei-o a fazer contas de somar e dividir enquanto pensava que não estava com o pai na pesca e imaginei-o chegar a casa, dar um beijo à mãe enquanto ela lhe perguntava se tinha aprendido muitas coisas. Imaginei-o com os irmãos a estudar as lições, à pressa, antes de ir fazer travessuras com os seus amigos.

Imaginei-o a sonhar com o futuro. O que seria quando fosse grande. Que gostava da pesca mas não queria ser pescador. Que queria ser mais, um sábio, estudar e aprender muitas coisas para ensinar aos filhos e aos netos. Imaginei-o a pensar que ia casar com uma moça airosa, de cabelos longos e carinhosa, que à noite, ao chegar a casa o iria abraçar e teria sempre uma goludice para ele para sobremesa.

Imaginei que falava com ele e lhe perguntava se alguma vez, sentado naquela sala, imaginou que um dia ia ser avô.

(12 Setembro 2007)

Imaginário VIII

Mais um dia de trabalho. Mais um? Não, não mais "um".Rafael chegou cedo - como em todos os dias. Extremamente pontual na chegada e nunca preocupado com a hora da saída.
A calma dele, aquela calma que fazia com que tivesse sempre um bom desempenho, aquele sorriso tímido que arrancava sempre uma resposta favorável, o modo assertivo de falar... Muitos colegas o invejavam pela proximidade distante que mantinha, sem saberem que não era forçada, era característica do seu feitio. Sem saberem o quanto ele gostaria, secretamente, de ser mais sociável, mais extrovertido, menos calado.

"Mais um dia de trabalho",
pensou Rafael,
"vai ser só mais um dia de trabalho, ninguém se vai lembrar, não terei que fingir. Só espero ter a prenda que quero".

"Parabéns Rafael!"
Gritaram todos os colegas quando ele entrou na sala do café. Seguiram-se os abraços, as pancadinhas nas costas, as piadas.
"Hã, mais um ano.. menos juízo, já se sabe"
"Então, a tua gaja? Embrulhou-se só para ti?".

Estava tramado.

"Rafael, então, pá? É só mais um ano, pá, um sorriso é só o que se pede, homem! Parece que vieste para um funeral, caramba!"Rafael sorriu, forçado. Precisava de um canto para se enfiar, onde pudesse estar sozinho. Casa de banho. Na casa de banho pode sempre estar-se sozinho. Entrou. Escolheu a divisória mais afastada da porta. Sentou-se na sanita, trancou a porta. Pôs os pés para cima. Pegou no portátil e começou a trabalhar. Era escusado. Ia falar ao chefe. Não podia estar assim.

Saiu da casa de banho. Pousou o portátil em cima do balcão, abriu a torneira. O barulho da água acalmava-o. Arregaçou as mangas da camisa, inclinou-se para a bacia, olhando sempre olhos nos olhos no espelho. Olhando-se nos olhos. A si próprio.

"O que andas a fazer, Rafael?"
perguntou-se enquanto mergulhava a cabeça debaixo da água que corria, fria.
"O que andas a fazer?"

Secou-se. Aquela situação andava a arrastar-se há demasiado tempo. Já nem sabia onde estavam.
O que começou com um beijo fugaz na sala das fotocópias havia quase 2 meses tornou-se fogo, queimava, prendia e libertava e ele não sabia como tinham chegado ali. Já não sabia se era por vício. Já não sabia se era por curiosidade. Só sabia que o desejo da carne era insuportável. A necessidade de a ver, falar com ela. A necessidade de a tocar, de a sentir.
Tinha que falar com ela. Porque para ele não passava de carne: ela dava-lhe o melhor sexo que ele alguma vez tinha tido, sem drogas, sem álcool, sem nenhum tipo de subterfúgio. Sexo, bom. Não, bom seria pouco. Sexo muito bom, como nunca tinha pensado que existia. Era apenas isso. O resto não estava programado.
Ele queria uma mulher "normal". Dona de casa. Boa mãe, com valores. Ao mesmo tempo não queria pensar isto, mas para ele era incompatível que ela fosse excelente na cama e boa mãe de família. Ela queria ter duas: a Marta para aquele sexo do outro mundo e uma rapariga que nem precisava ser linda e boazona, bastava que fosse meiga, inteligente e boa dona de casa - como a mãe dele.

Marta abordou-o no corredor, quando ele vinha ainda a secar o pescoço com o toalhete de papel:
"Preciso falar contigo".

Rafael empalideceu. Encostou-se à parede. Não era de rezar, mas rezou. Rezou porque aquilo era apenas sexo. Nem paixão havia. Sexo. Uma queca fabulosa, um cigarro no fim, o banho. O"Até amanhã, no escritório"sem um beijo sequer.
"Estou grávida."

(Originalmente publicado aqui, no Cai de Costas)
(5 Setembro 2007)