quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Imaginário IV

"Era uma vez", começava assim a história. Começava assim porque todas as histórias têm que começar por "era uma vez".

Nunca percebeu porquê.

Ele lembra-se de ser criança, pequenino, e a avó lhe dizer que se fosse um menino bonito e desse um beijinho aos papás e se fosse deitar cedo ela lhe ia contar uma história.

Então ele dava um beijinho e pedia a bênção à família e ia para o quarto, acendia o candeeiro, dizia as suas orações e esperava pela avó, que logo de seguida chegava para se sentar à beira da cama.

Recorda-se que todas as histórias começavam com "Era uma vez..." e que normalmente, a seguir, vinha "um menino" ou "uma menina", "muito pobrezinho" (ou pobrezinha).

Antes de se sentar a avó aconchegava os cobertores e os lençóis. Fazia-lhe sempre uma festinha na testa, como que a tirar a franja dos olhos. Aconchegava-lhe o urso de peluche já remendado mas ainda assim o seu companheiro inseparável das noites de pesadelos.

A avó pegava então no livro.

"Era uma vez uma menina, uma menina muito pobrezinha, que não tinha sapatos, não tinha brinquedos, não tinha amigos..."

Ele recorda que gostava que a história começasse pela menina. Um dia perguntou porque é que a menina era muito pobrezinha e a avó respondeu que havia muitos meninos muito pobrezinhos e que ele devia ouvir a história até ao fim.

Quando a avó chegava à parte do príncipe ele imaginava-se num fato galante de veludo, em vários tons de azul, com calções em balão por cima de collants e uma capa ao pescoço, que era fina e esvoaçava à mínima brisa e lá ia ele, em cima do seu cavalo "Veloz", salvar a menina pobrezinha e acabavam a viver os dois felizes para sempre.

"Era uma vez uma menina, uma menina muito pobrezinha, que não tinha sapatos, não tinha brinquedos, não tinha amigos e não podia ir à escola. A menina tinha que trabalhar no campo com os pais, que gostavam muito dela e tinham muita pena que a menina não pudesse ir aprender a ler."

Ele imaginava-se a salvar a menina, e ir com ela à escola, e seriam inseparáveis. Eles iam crescer e iam gostar muito um do outro, como o avô e a avó, como o papá e a mamã, e iam casar e iam ser felizes para sempre.

Ele lembra-se de ser criança e do cheiro dos bolos da avó, e de a mãe lhe cerzir as peúgas, sentada à lareira na cadeira de baloiço enquanto o pai lutava para vencer o cansaço e ler mais uma notícia, atrasada, do jornal. Lembra-se das visitas das tias que vinham da serra e traziam queijos e chouriças e lã que a mãe usava para fazer camisolas e pantufas. Lembra-se de o pai o ensinar a andar de bicicleta no jardim em frente à casa e de não o deixar cair.

Ele lembra-se de perguntar à avó porque é que as histórias do livro eram sempre tão parecidas, e quando a avó lhe dizia para ele ouvir com atenção ele nem se lembrava mais da história anterior, porque a avó magnetizava-o.

Ele lembra-se de ir crescendo e aprender a ler e de abrir o livro e não serem aquelas as histórias que ele ouvia. Ele não gostava das histórias do livro. Lembra-se que nunca disse nada à avó que sabia que ela não sabia ler. Lembra-se de sentir que o importante não eram as histórias, era a avó.

Ele lembra-se que todas as histórias começavam com "Era uma vez..." e terminavam com "... e foram felizes para sempre."

E tentava imaginar o que era ser feliz para sempre, e adormecia a pensar na felicidade que ia ter com a princesa que ia salvar... para sempre.

Agora, à beira da cama, a olhar para a sua princesa, ele sabe que a avó tinha razão e sabe porque é que todas as histórias começam com "Era uma vez..." e terminam com "... e foram felizes para sempre."

E foram felizes para sempre...

(8 de Agosto 2007)