sábado, 28 de fevereiro de 2009

Imaginário XXXVII

Vi-te a primeira vez de soslaio. Lembro-me perfeitamente porque nunca mais esqueci o teu olhar. Não sei se os teus olhos brilhavam tanto como me pareceu mas para mim o teu olhar ofuscava.

Estavas na paragem do autocarro como descobri que estavas todos os dias. Tu, o teu jornal e a tua pasta. Entraste placidamente, mostraste o passe como todos mas a tua calma confesso que era exasperante, a tua calma àquela hora da manhã, áquela hora em que apesar de cedo já todos estão stressados como se fosse o fim do dia.

E a tua calma exasperante chamou-me a atenção. Lembro-me de ter praguejado para dentro e maldito a tua serenidade e as coisas da vida são como são e se não fosse a tua calma hoje não te estaria a escrever esta carta.
Eu na minha pressa a levar o mundo à minha frente - como se por eu andar depressa o mundo girasse mais rápido. Porque andaria eu tão depressa? - e acabei por te levar à minha frente: a ti, à tua pasta, ao teu jornal. E acabei por te trazer para o meu mundo, sem querer, sem saber...

Eu e a minha pressa armámos uma confussão no autocarro e tu e a tua calma resolveram tudo num instante. Sei que corei violentamente, sei que corei a um ponto que pensei que a cabeça me ia rebentar. Não sei se corei pela confusão, se pelo teu olhar ter outra vez cruzado o meu e ter brilhado ainda mais. Talvez por ambos. Tu sabes, aquelas situações em que ficamos paralisados. E tu com a tua calma pegaste no teu jornal, na tua pasta e na minha e disseste que devolvias quando eu me sentasse e acalmasse, que tanto stress de manhã fazia mal.
Sentámo-nos juntos: eu, tu e a tua calma. E o resto do mundo desapareceu.
Entretanto saíste no teu destino. E eu estática a olhar. Saíste do autocarro mas percebi que não irias tão cedo sair da minha vida.

No dia seguinte não estavas lá no sítio do costume. Nem no outro. A ansiedade começou. No terceiro dia lá estavas. Sorriste e esse sorriso brilhava. Brilhava tanto que eu me sentia ofuscada.
Nesse dia ficámos juntos, não saíste na tua paragem. Eu não saí na minha. Ficámos juntos e quase sem falar fomos para minha casa.
O teu sorriso, a tua voz doce e calma fazia-me esquecer tudo o resto e era bom.
No dia seguinte voltaste. E no outro. Quando eu reparei não te tinhas mudado só para o meu mundo, tinhas-te tornado o meu mundo.

No último dia que te vi fizemos amor como nunca tínhamos feito - pelo menos eu nunca tinha feito, nem contigo nem com ninguém - até aí. Nunca me tinha entregue de uma forma tão intensa, tão descontraída, tão solta. Eu que já tinha tido umas quantas relações senti-me nesse dia de novo virgem. Sei que enquanto me apertavas nos teus braços durante aquela onda que nos sacudiu de alto a baixo eu sorria num sorriso que eu desconhecia em mim. E senti-te a minha pele. Senti coisas que não tinha sentido antes, nem mesmo contigo. E sorri.

No dia seguinte ao acordar sorri. E no trabalho sorri. Passei o dia a sorrir. E cheguei a casa. Tinhas ido embora e até hoje eu não sei porquê.

Não sei tão pouco quanto tempo passou desde que foste embora e me deixaste apenas o sorriso que ainda trago hoje. O mundo, que tinha desaparecido naquele dia no autocarro, ainda não apareceu. E tu, que te tornaste o meu mundo, desapareceste.

E eu que queria tanto perguntar-te como foi seres a minha pele...


(28 de Fevereiro 2009)