segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Imaginário XIV

Lembro-me de ver aquela rapariga todos os dias. Bem, ou pelo menos quase todos. Já nem sei há quanto tempo a vejo. É difícil não reparar nela e atenção, não interpretem isto de modo leviano. É difícil não reparar nela porque ela passa totalmente despercebida.

Creio que é daquelas que se tentam mimetizar no meio da multidão. Quer dizer, é só uma ideia, não sei. Que mania que temos de olhar para as pessoas, especialmente aquelas que nos habituamos a ver sem nunca lhes tocar, sem nunca ouvirmos a sua voz, nem nunca receber um olhar directo nos olhos... bem, neste último caso nem é bem verdade porque às vezes os nossos olhares cruzam-se de vez em quando e devo dizer que o olhar dela me incomoda. Não é que transpareça maldade ou que demonstre ficar chateada ou importunada. Mas é um olhar tão profundo, penetrante e insistente, como se desafiasse, que tenho mesmo que desviar os olhos dos dela. Chega a dar-me a sensação de que para ela estes olhares nos olhos são um desafio e quem acaba por sentir o incómodo como se da invasão da alma se tratasse sou eu.

Seja como for, estava eu a dizer que a impressão que me dá é que ela se quer fazer confundir com o meio, como se desejasse ser camaleão... até vou mais longe. Quer-me mesmo parecer que se ela pudesse seria mais que camaleão... como explicar? Que se ela pudesse estaria no meio da multidão a observar toda a gente, perfeitamente visível mas sem deixar que ninguém a visse... como se fosse possível...

O que me chama a atenção nela é o facto como ela até parece fazer para repudiar os olhares dela. Acredito que não se apercebe de como acaba por ser alvo de tantos olhares. Olho para todos à minha volta e reparo que todos a olham também e enquanto penso no que ela estará a pensar penso também no que os outros estão a pensar sobre ela, se será o mesmo que eu. Penso ainda quem é que a vê há mais tempo que eu e a analisa há mais tempo e julga compreendê-la há mais tempo e quem é que a vê há menos tempo e nesse “menos tempo” já sabe mais sobre ela que eu, e desses eu sinto ciúme.

Que coisa parva - digo para mim logo a seguir - Que coisa parva sentir ciúme de pessoas que não conheço. Devo estar a ficar lélé - é o que me vou repetindo. E no entanto queria ser só eu a compreender o que ela pensa, sente, quer, sonha, deseja...

(17 Outubro 2007)